Sabe quando alguém está jogando videogame e, de repente, a tela congela, o controle não responde, trava tudo?
Pois, bem, nesta quarta (24), o Brasil deu tilt.
Em Brasília, mais de 150 mil pessoas (de acordo com os organizadores) e 45 mil (segundo a Polícia Militar) marcharam em direção ao Congresso Nacional para protestar contra as Reformas Trabalhista e da Previdência e pela saída de Michel Temer, sendo duramente reprimidas por policiais. Além das costumeiras bombas de gás e balas de borracha, armas letais foram usadas contra manifestantes. Um grupo ateou fogo na entrada de dois ministérios e depredou outros oito. O saldo já seria trágico com as dezenas de feridos, mas Michel Temer resolveu convocar 1300 integrantes do Exército e 200 fuzileiros navais para a ''garantia da lei da ordem'', em Brasília.
No mesmo dia em que o ocupante do Palácio do Planalto ''declarou guerra'' aos manifestantes, uma ação conjunta das Polícia Civil e Militar e do Pará levou à morte de nove homens e uma mulher em Pau d'Arco. Segundo o governo do Estado, os policiais estariam cumprindo mandados de prisão de acusados de assassinar um segurança de uma fazenda, mas a Comissão Pastoral da Terra afirma que foi uma ação de despejo. O município fica a 230 quilômetros ao Sul de Eldorado dos Carajás, onde 19 trabalhadores rurais sem-terra foram assassinados pela PM em 1996.
Enquanto isso, um protesto de servidores foi pesadamente reprimido com mais gás lacrimogênio e balas de borracha nos arredores da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Lá, uma votação aprovou o aumento da contribuição previdenciária do funcionalismo público de 11% a 14% como ação para conter a crise. Vale lembrar que o Estado não quebrou por conta das aposentadorias de professores e policiais, mas – em grande parte – pelas bilionárias renúncias fiscais dadas a empresas ao longo dos anos pelo poder público.
E na capital paulista, a secretária municipal de Direitos Humanos, Patrícia Bezerra, que vinha sendo uma ponte com movimentos sociais, pediu exoneração do cargo após considerar ''desastrosa'' a ação na Cracolândia central – uma operação violenta, iniciada no domingo, para a retirada de pessoas que sofrem dependência de drogas do local e a desarticulação da venda de crack. Nesta segunda, a Prefeitura de São Paulo havia começado a demolir edificações como parte de uma violenta operação. O problema é que haviam pessoas dentro dos imóveis. Três ficaram feridas quando uma escavadeira do município atingiu uma pensão ainda ocupada. Por isso, atendendo a um pedido da Defensoria Pública, a Justiça concedeu uma liminar contra a demolição compulsória de imóveis na região da Cracolândia central e a retirada de moradores sem encaminhamento para programas de habitação e saúde. Apesar do prefeito João Doria afirmar que a Cracolândia havia acabado, ela apenas se deslocou para outro lugar próximo dali.
Um dia de tilt.
Quando o impeachment foi aprovado, um dos receios era o esgarçamento institucional que uma retirada de uma presidente eleita pelo voto popular por um motivo frágil (pedaladas fiscais) em vez de um caminho mais sólido (cassação da chapa por caixa 2) poderia causar. Infelizmente, o esgarçamento aconteceu.
Seja por conta dos problemas com lei enfrentados por sua equipe e base aliada, seja por seus próprios, Michel Temer não conseguiu garantir legitimidade ao cargo.
Se a cúpula política do país não segue as regras, outros membros do poder público sentem-se à vontade para não respeitar suas funções e mandatos. Esse clima de ''tudo pode'' ajudou a criar a última onda de violência no campo contra trabalhadores rurais e indígenas, a aumentar a violência contra pessoas em situação de rua e pessoas que sofrem de dependência de drogas, a fazer subir a violência contra jornalistas e movimentos sociais.
Nesses momentos de tilt, apenas um reset no sistema resolve. E se for um reset pelas mãos do povo, melhor ainda.
Quando instituições nacionais estão esgarçadas e desacreditadas, a melhor maneira de evitar violência de Estado e convulsões sociais é devolver ao povo o direito de escolher diretamente um novo mandatário para governá-lo. Só o povo é capaz de repor a legitimidade que o país precisa.
Qualquer uma das saídas para a crise, sejam eleições diretas ou indiretas para um mandato tampão para a Presidência da República, tem seus problemas – considerando o cenário de instabilidade em que estamos. Nenhuma é perfeita. Mas diante do que está posto, o restabelecimento da vontade popular em detrimento das necessidades de um grupo político (que quer salvar sua própria pele, diante das denúncias de corrupção) e de um grupo econômico (que deseja aumentar sua competitividade mediante a redução de custos que garantem qualidade de vida ao trabalhador) é a mais difícil, mas traria mais frutos. Pois teria a legitimidade popular para encabeçar uma Reforma Política que melhorasse, finalmente, o sistema.
Por fim, é uma bobagem afirmar que ser a favor de eleições diretas para escolher um substituto para Michel Temer é defender a volta de Lula. O fato de sua taxa de rejeição ser maior que sua intenção de votos junto com a quantidade de escândalos envolvendo seu nome torna o caminho de um adversário num possível segundo turno mais fácil do que se imagina.
A opção por reiniciar o sistema, contudo, não deve ser tomada pensando no melhor caminho para levar o candidato A ou B ao poder. Deve ser defendida, independentemente quem ganhe. Pois o objetivo para todos os que se preocupam com a democracia, neste momento, é destravar um país.
Fonte: Blog do Sakamoto, 25 de maio de 2017.