Alunos do terceiro ano do ensino médio de um colégio em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, se vestiram como garis, vendedores ambulantes, faxineiros e cozinheiros no dia 17 de maio, em uma atividade com o tema “se nada der certo”. O objetivo, segundo o colégio era “trabalhar o cenário de não aprovação no vestibular”, incentivando os alunos a “lidar melhor com essa fase”

As imagens dos alunos da Instituição Evangélica de Novo Hamburgo foram recebidas nas redes sociais com indignação. A instituição pediu desculpas em nota, dizendo não ter tido intenção de discriminar determinadas profissões.

O Nexo questionou Regina Novaes, antropóloga, professora da UFRJ e pesquisadora do tema da juventude, sobre o que significa “dar certo” hoje para os jovens brasileiros, que ideias estão por trás desses modelos e a partir de qual campo de possibilidades eles são traçados.

Por que na sua avaliação o assunto trazido à tona pelo evento do colégio Marista repercutiu tanto?

REGINA NOVAES Em primeiro lugar devo dizer que as fotos da festa causam indignação. O deboche é revelador. Por meio da depreciação a certas profissões, uma parcela privilegiada de jovens expressa sua visão elitista e (re)marca sua posição de classe. Mas, em uma perspectiva mais otimista, devo dizer que certas repercussões do debate também revelam algumas mudanças em nosso país. Várias reações via internet demonstram que tem mais gente hoje disposta a criticar tais manifestações que naturalizam as persistentes desigualdades da sociedade brasileira.

O melhor exemplo foi o grande número de compartilhamentos da resposta  de Marcio, filho de porteiro, que coloca o foco na relação contraditória, complementar e de dependência entre os brasileiros “que deram certo” e os “que não deram certo”. Outros jovens — cujos pais trabalham ou trabalharam em profissões socialmente desvalorizadas — também usaram as redes sociais para contar suas histórias e questionar preconceitos. Em muitos posts que tive acesso, jovens internautas ­ vários deles participantes de projetos culturais e políticas sociais implementadas nos últimos 14 anos ­, revelando seu conhecimento e interessantes reflexões sobre o que se passa hoje no Brasil, questionaram as “bolhas sociais” em que vivem certos segmentos juvenis. Este é o lado bom da história!

O que é dar certo para o jovem no Brasil hoje? Esse conceito difere de acordo com a classe social? Como?

REGINA NOVAES Para os jovens de hoje, o desejo de “dar certo” vem acompanhado com o “medo de sobrar”. Esse medo está relacionado ao mercado de trabalho, cada vez mais mutante devido a incessantes mudanças tecnológicas. A cada dia se enterram velhas profissões que dão lugar a inserções parciais, precarizadas e sem continuidade garantida no mundo do trabalho. Mas é claro que este “medo de sobrar” é diferente para jovens de classes sociais distintas. Se a insegurança em relação ao futuro atinge a todos, os recursos sociais e culturais para fazer face a esse medo são profundamente desiguais. O acesso à escola, a qualidade do ensino, o acesso à cultura, as possibilidades de escolha afastam jovens nascidos na mesma época, da mesma geração. Cor, gênero, aparência, local de moradia funcionam como filtros reprodutores de desigualdades que acentuam o “medo de sobrar”. Porém, não há como negar que mesmo entre os jovens privilegiados há mais insegurança em relação ao futuro do que havia na geração de seus pais. 

Em que medida a ideia de meritrocaria 

REGINA NOVAES A ideia de meritocracia se ancora no reconhecimento do esforço individual e no “não reconhecimento” de características das histórias pessoais, que impulsionam ou dificultam as trajetórias de inserção produtiva e social. Por meio da meritocracia se propõe um pretenso tratamento igualitário que — na realidade — funciona como um poderoso reprodutor de desigualdades. Neste sentido, “dar certo” depende do campo de possibilidade em que se move o jovem em questão. É dentro de um campo de possibilidades (socialmente determinado) que os jovens fazem seus projetos de vida e negociam com a realidade. O que significa “dar certo” para um jovem de classe média ou alta que não consegue atender as expectativas de seus pais, que “investem” nos melhores colégios, em cursos de línguas, em viagens e intercâmbios?

O que significa “dar certo” hoje para os jovens das classes populares que interrompem o estudo para trabalhar; voltam a estudar; conciliam estudo e trabalho; enfrentam preconceitos raciais, de identidade e orientação sexual; vivem em territórios ameaçados pela violência do narcotráfico e da polícia? Certamente as respostas para estes jovens sobre “dar certo” são diferentes, mas a “meritocracia” funciona com um “democrático” pano de fundo comum que está presente mesmo entre os mais pobres que interiorizam critérios e valores dominantes na sociedade.

De onde vem o estigma da sociedade brasileira em torno do trabalho manual? O que significa no contexto brasileiro assumir que garis, domésticas e porteiros deram errado?

REGINA NOVAES Essas perguntas exigem um olhar para o passado e um olhar para o presente. Ao buscar um olhar histórico encontramos uma sociedade de passado escravocrata. Essa característica é marcante na construção de uma contraditória lógica republicana. Por um lado desvaloriza­se o trabalho manual, resistindo reconhecer direitos dos trabalhadores e reinventando novas formas de escravidão. Por outro lado, afirma que “todo o trabalho é digno”, fazendo uma ode ao “trabalho” para se contrapor ao “não trabalho”, aos desocupados e transgressores que ameaçam a ordem instituída. Nesta ótica, o trabalhador que reproduz — de geração a geração — a posição subalterna “deu certo”.

Assim como “deram certo” aqueles que reproduziram seus privilégios de classe. Não deram certo os transgressores, aqueles que ficaram “à margem”, se tornaram bandidos. Essa tensão é constitutiva da nossa sociedade hierárquica e excludente que se vê como democrática. Já ao olhar o presente, temos a soma de novas tensões: para esta geração a escolaridade (concluir o fundamental, ensino médio, técnico ou universitário) não tem o mesmo peso do passado. Nem sempre o estudo garante o futuro. O diploma é como um passaporte: necessário, mas não garante a viagem.

É verdade que os jovens brasileiros de hoje têm mais escolaridade do que seus pais. Porém, a partir de certas mudanças (globais e nacionais) na estrutura produtiva, a experiência de jovens (de diferentes classes sociais) hoje inclui histórias pessoais ou de outros jovens que se empregam em profissões que exigem menos escolaridade do que conseguiram obter ou, então, estão em empregos distantes daqueles para o qual se prepararam. Assim o desemprego e o subemprego chegam também aos diplomados.

O que, ainda que de maneira indireta e fragmentada, faz com que a hipocrisia da meritocracia possa ser colocada em xeque. Mas o mais trágico é que, ao invés de refletir sobre estas mudanças e buscar caminhos para novas e criativas formas de inserção de jovens no mercado de trabalho, as escolas (despreparadas para enfrentar questões atuais) reproduzem e não questionam velhas hierarquias entre as profissões. Nesse cenário, as profissões que exigem menor escolaridade são vistas como ameaça. O que se esperaria hoje é que — para apoiar seus alunos — as escolas motivassem reflexões sobre características do mundo do trabalho de hoje e fossem além destes valores elitistas parados no tempo.

“Dar certo” poderia ser pensado na ótica da criatividade, da invenção social, da reinvenção da vida e principalmente fora da antiga dicotomia trabalho manual x trabalho intelectual. É o que tem acontecido em alguns lugares do mundo, sobretudo no que diz respeito à produção ecológica, ao cuidado de idosos e às novas expressões artísticas. Na verdade, os jovens de hoje (tanto os mais pobres quanto os mauricinhos privilegiados) precisam ser apoiados para ampliar suas possibilidades de escolha em um mundo que não está dando conta de suas promessas de sucesso baseadas no consumo e na meritocracia.

Fonte: Nexo, 12 de junho de 2017.