Difícil imaginar um símbolo mais bem acabado da falência institucional brasileira do que o triste presidente da República, Michel Temer. Flagrado em mentira, gravado sendo subserviente ao poder econômico, acusado de uma longa lista de crimes, vilipendiado por um país inteiro, indigno da confiança de quase todos os brasileiros, ao menos tem gerado bons memes. Xingar Temer tem sido uma das pouquíssimas satisfações cívicas que nos restou no Brasil.
Diante disso, ele olha para nós com firmeza e grita indignado que tem autoridade para fazer tudo isso e seguir presidente da República. E grita com tal convicção que todos nós tocamos a vida em frente, como que aceitando que ele tenha mesmo essa autoridade, conferida a ele pelo título que ele carrega. Pela instituição que ele representa.
E, no entanto, ele está saqueando essa instituição. Eleito por tabela após se esconder na campanha, ele despreza a vontade popular – orgulha-se aliás de poder prescindir dela. Descrito por seu comparsa Joesley Batista como o “chefe da maior e mais perigosa organização criminosa mais perigosa do Brasil”, ele muito claramente trabalha para interesses privados. Enfim, tudo o que ele faz contraria logo de cara o parágrafo único do artigo primeiro do primeiro capítulo da principal lei da nação, a Constituição, que começa dizendo que “todo o poder emana do povo”. Está na cara que o poder de Temer não emana do povo. Óbvio que emana de algum outro lugar.
Em outras palavras, o presidente do país é essencialmente o oposto do que deveria representar a instituição que ele comanda. Óbvio que ele não deveria ser presidente. Óbvio que tem algo profundamente errado num sistema que permite que ele seja.
Quando penso no futuro que este momento atual da história nos legará, consigo imaginar dois cenários possíveis. Em um deles, aprendemos com os erros, encontramos as imperfeições do país e melhoramos. Em outro, o esfacelamento das nossas instituições acabam com elas e ficamos presos num redemoinho de instabilidade e autoritarismo, cometendo sempre os mesmos erros, nas mãos de velhacos como Temer.
Fico pensando que um vilão tão óbvio e indefensável pode ser útil na hora de fazer essa escolha. Quem sabe esse presidente desastroso não possa ao menos deixar esse legado positivo para o país: o de ser uma espécie de espantalho, que nos inspire a reinventar a República de maneira a nunca mais cair vítima de pessoas como ele. Ele pode ficar para a história como a síntese de tudo o que não queremos no futuro: o monstro que motivou um novo projeto de país.
Não seria a primeira vez que uma figura simbólica inspiraria a transformação de uma sociedade. O caso óbvio é o alemão, claro – embora eu não esteja aqui tentando equiparar a monstruosidade de Temer com a de Hitler. Os traumas consecutivos do nazismo e da divisão da nação alemã foram uma força mobilizadora que ajudou o país a chegar a um consenso sobre o que não queria nunca mais para si. A nova república alemã é por constituição anti-militarista, aberta e cheia de salvaguardas que impedem a redução de direitos e o poder excessivo de um governante. As precauções estão por toda parte: por exemplo, militares alemães têm ampla liberdade para recusar ordens de superiores, num nível nunca antes visto em país nenhum. Difícil imaginar que pudesse ser assim, se não fosse o trauma causado pelos efeitos nefastos de uma hierarquia rígida demais.
Já os monstros que inspiraram a originalidade dos Estados Unidos viviam do outro lado do Atlântico: eram a realeza britânica, que perseguiu os grupos religiosos que fundaram o país e explorou a colônia enquanto pôde. A república americana inovou no planeta ao criar um modelo de Estado cheio de freios e contrapesos, no qual o poder de uns é sempre contrabalançado pelo de outros. Os fundadores do país tinham tanto medo de tirania e de concentração de poder que buscaram nesse medo a inspiração para inventar um tipo de sociedade que até então não existia em nenhum outro lugar. Monstros são úteis.
Temer encarna em si praticamente tudo o que deu errado no Brasil. Representante-símbolo da cultura do privilégio que distorce este país, ele é um ex-funcionário da elite do serviço público que se aposentou aos 55 anos e passou a ser sustentado pelo Estado com uma aposentadoria imensa, que lhe permite vida de rico. Privilegiados como ele mandam no Estado, controlam a Justiça, têm muito mais direitos do que o resto dos brasileiros. Comportam-se como proprietários privados daquilo que deveria ser público. Torço para que o espantalho-Temer nos ajude a redesenhar a República de maneira a eliminar todos os privilégios possíveis, e assim finalmente colocar em prática outro princípio básico da Constituição, o de que “todos são iguais perante a lei”.
Outro aprendizado que eu adoraria que Temer nos legasse tem a ver com o papel do Estado, que deveria ser uma plataforma para a construção coletiva do país, gerido por representantes legítimos da sociedade toda. Não deveria ser propriedade de ninguém, não deveria ser operado por uma classe à parte. Não deveria estar à venda nem trabalhar a serviço de quem pode pagar. Não deveria funcionar à revelia do interesse e da opinião pública. Quem sabe o trauma atual acabe inspirando a criação de mecanismos que protejam o Estado de ser sequestrado de novo?
Nenhum desses problemas que Temer nos ajudou a enxergar é simples de resolver, em nenhum lugar do mundo. Mesmo democracias muito mais ricas e desenvolvidas, de tempos em tempos, esbarram em privilégios, em clientelismo e em corrupção. A única vantagem que nós no Brasil temos sobre elas é o monstro. É o trauma, que vem do fato de termos sentido na pele os efeitos terríveis de não se proteger dessas coisas. Claro que Temer tem que ser preso, mas puni-lo não é suficiente – precisamos também mudar, para que não aconteça de novo. Será que conseguiremos aprender? Ou nos daremos por satisfeitos com aquela única satisfação cívica que nos resta – a de xingar Temer?
Fonte: Nexo, 23 de junho de 2017.