Os filmes “Uma babá quase perfeita” ou “Um tira no jardim de infância”, clássicos do início dos anos 1990, não soariam tão inusitados para as gêmeas Valentina e Maria Antônia, de 9 anos. A babá que as acompanha ao dentista, ao jogo de futebol e a festinhas atende pelo nome de Sérgio Menezes dos Santos, o Serginho. Ainda funcionário da metalúrgica do pai das meninas, ele costumava se oferecer para cuidar dos filhos mais velhos, Francisco e Tomás, que hoje têm 19 e 15 anos, respectivamente. Com o nascimento das irmãs mais novas, ainda prematuras, ele se tornou o cuidador oficial. De uns anos para cá, virou babá também de dois primos delas: João, de 6 anos, e Carol, de 10.
— Eles me contam segredos, fazem confidências. É uma relação ótima — conta ele, abrindo o largo sorriso de quem, mesmo sem ter sido pai, reúne um séquito de filhos. — Fazemos juntos pequenas “contravenções”: compramos mais doces do que deveríamos e criamos nossas próprias brincadeiras. Foi cuidando dessas crianças que eu me encontrei.
Sérgio, de 50 anos e cabelo descolorido “espetado”, conta que muitas vezes é confundido com motorista.
— As pessoas têm dificuldade de chamar um homem de “babá”. Como vivo levando os meninos de um lado para o outro de carro, sempre acham que sou o motorista deles — diverte-se.
Ele trabalha por diária, sem dormir no serviço. Prefere assim, porque isso permite que ele também tenha tempo para atuar como cuidador de idosos, outra de suas paixões.
— Eu só não o contrato para ficar o dia inteiro porque ele não quer. Por mim, ele ficaria direto — comenta a mãe de João e Carol, Flavia Cristofaro, produtora de artes. — As crianças ficam ansiosas pelas horas que passam com ele.
Simone Ruiz, mãe das gêmeas, lembra que foi Serginho quem correu para levá-la à maternidade, quando ela entrou em trabalho de parto. Enquanto o marido, Augusto, acreditava que era um “alarme falso”, o futuro babá das meninas não pensou duas vezes.
— É um babá perfeito, não é “quase”. Tenho certeza de que a convivência das minhas filhas com ele é essencial para a formação delas — pontua Simone.
BUSCA POR QUALIFICAÇÃO
Apesar de os homens ainda terem uma presença muito tímida nesse mercado, alguns cursos vêm registrando sua procura por capacitação. Responsável pelo Espaço Cuidar Bem, que oferece treinamento para babás, a psicóloga Aline Gomes conta que nos últimos meses dois rapazes buscaram a qualificação, que inclui aulas de primeiros socorros, nutrição, recreação, psicologia infantil e cuidados com bebês. Foram os dois primeiros que se formaram por lá. Segundo a psicóloga, o perfil das babás mudou bastante nos últimos anos, principalmente com a nova legislação sobre o emprego doméstico.
— A possibilidade de ser um cuidador de crianças sem ter que dormir no emprego aumentou, o que fez com que pessoas de outras áreas começassem a se interessar por essa colocação — conta ela. — Primeiro, recebemos no nosso curso mulheres que trabalhavam como secretárias e comissárias de bordo. Nos últimos meses, tivemos dois homens: um ainda universitário e outro geofísico.
O geofísico em questão é Marcos Santos, que faz doutorado em Oceanografia. Ele trabalhava na área de petróleo, mas, em meio à crise, perdeu o emprego, o que o fez buscar saídas possíveis. Como também quer ser pai em breve, pensou em aliar uma qualificação a um aprendizado pessoal.
— Antes de fazer o curso, pesquisei em fóruns na internet e vi várias mães dizendo que não deixariam os filhos com um babá homem por medo de assédio. Acho que isso é contornável: basta conhecer a pessoa em questão. Há bons profissionais em toda parte, independentemente do gênero — diz.
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Em Niterói, a Agência Viviane Aguiar recebeu este mês, pela primeira vez, um homem interessado no curso de babás oferecido pela instituição. Depois dele, outros três já se inscreveram nas próximas turmas.
Pioneiro, Antônio Valdir Sobrinho, de 39 anos e morador de São Gonçalo, conta que se matriculou para aprender um novo trabalho e para “quebrar o preconceito”. Ele não é exatamente um “cuidador de primeira viagem”: mesmo sem filhos, acumula experiência de já ter lidado com cerca de 20 sobrinhos e sobrinhas — uma delas criada por ele desde os 2 anos de idade.
— Eu pretendo entrar no mercado mesmo, não estou no curso só de curiosidade — enfatiza ele, que já tem formação como cuidador de idosos, curso superior incompleto em História e hoje trabalha como vendedor. — Eu gosto muito de cuidar de crianças. Não vejo motivos para essa área ter que ser restrita às mulheres.
Dona da agência que leva seu nome, Viviane não considera uma coincidência que a procura masculina pelo curso de babás esteja começando agora.
— Acho que isso tem muito a ver com o que está acontecendo no país, com a forte discussão sobre igualdade de gênero — analisa.
DIFÍCIL INSERÇÃO NO MERCADO
egundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base em dados de 2010, a população de empregados domésticos homens é de 5,5% em todo o país, reunindo profissionais como faxineiros, diaristas, acompanhantes de idosos e de pessoas doentes, por exemplo. Não está especificado quantos desses cuidam de crianças, mas, a julgar pela experiência de alguns, não é tão fácil encontrar vagas para esse tipo de trabalho sendo um homem. Waldecir Justino Sant‘Ana, por exemplo, atuou como babá de 2013 até dezembro de 2016 e, desde então, não consegue se recolocar no mercado.
— Só deixei o emprego porque minha mãe adoeceu e tive que voltar minhas atenções todas para ela. Então liberei a vaga para que contratassem outra pessoa. Agora, ela está bem e eu preciso voltar ao mercado, mas só consigo trabalho como diarista — afirma ele, aos 33 anos. — Já é difícil para um homem ser aceito para fazer faxina, mas para ser babá é ainda pior.
Wal, como ele é conhecido, cuidou da pequena Marina dos 3 meses de idade até os 3 anos e meio.
— Foi amor à primeira vista — resume. — Muitas pessoas fizeram até aposta de quanto tempo eu levaria como babá, por ser homem. Mas superei qualquer lance.
O fotógrafo Marcelo Tabach, pai de Marina, garante que não houve qualquer hesitação em contratá-lo por conta do gênero.
— Muitos acharam estranho admitirmos um babá homem, mas nós achamos ótimo. Quando vimos o cuidado dele com a Marina, percebemos que daria certo — destaca Tabach, lembrando como surgiu o apelido carinhoso pelo qual todos na família chamam Waldecir até hoje. — Nossa filha mais velha, Luíza, comentou: “Se eu tive uma babá e ela era mulher, e a Marina vai ter um babá e ele é homem... Então o Wal é o bobó”.
Para o psicólogo Ramiro Catelan, do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (Nupsex) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o baixo número de homens babás pode ser explicado pelo fato de todas funções ligadas ao cuidado terem sido historicamente delegadas às mulheres.
— Essa ideia persiste até hoje, em menor escala, mas ainda presente. É preciso que se entenda que o cuidado não é uma atribuição feminina: todas as pessoas estão aptas a desenvolver essa habilidade. Mas é preciso disposição para romper com padrões. A masculinidade hegemônica e tradicional se constitui na afirmação de valores como heterossexualidade, força, virilidade, violência, coragem, e se contrapõe a valores ligados à feminilidade. Esse é um fenômeno que precisa ser discutido. É possível a ampliação dos modelos de masculinidade — sublinha Catelan, que também faz parte do Grupo de Pesquisa Preconceito, Vulnerabilidade e Processos Psicossociais da PUC-RS.
Dessa forma, ele vê com bons olhos a iniciativa de homens que tomam para si atributos tradicionalmente associados — e impostos — às mulheres.
— No momento em que esses estereótipos rígidos forem sendo questionados, talvez as pessoas possam vir a ter mais confiança na hora de contratar babás homens — avalia o pesquisador.
Fonte: O Globo, 26 de junho de 2017.