Morando em um curral, sem banheiro e água potável, oito pessoas que trabalhavam sem receber salário foram resgatadas em uma ação do Ministério do Trabalho em abril no Tocantins. O grupo encontrado na Fazenda Portal incluía dois adolescentes e um bebê de 1 ano e 3 meses, na ocasião internado em um hospital nas proximidades.

Um dos libertos havia recebido apenas um pagamento em dois anos de serviço. Pessoas em situações de trabalho escravo continuam sendo flagradas pelo Brasil a cada ano. Como mostra o cadastro de empregadores que submeteram empregados a essa situação divulgado pelo Ministério do Trabalho em março, não há espaço para regionalismo.

Há casos no interior profundo do Pará, assim como no urbano bairro da Vila Maria, a quarenta minutos do Centro de São Paulo. Segundo o Código Penal Brasileiro, é considerado trabalho escravo qualquer atividade cujas condições do trabalhador atentem contra a dignidade humana. De acordo com o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, é crime submeter o trabalhador a condições degradantes, jornada exaustiva, servidão por dívida ou qualquer tipo de trabalho forçado.

Entre 1996 e 2013, mais de 50 mil trabalhadores em condições análogas à escravidão foram libertados no Brasil Coordenadas no âmbito do ministério pela SIT (Secretaria de Inspeção do Trabalho), as diligências são a principal arma contra essa prática.

Quando os fiscais saem a campo, estão atentos a diversos tipos de irregularidade. Além do trabalho escravo (reclusão de dois a oito anos, pelo Código Penal), são flagrados casos de trabalho infantil (de dois a quatro anos de prisão). Segundo a Fundação Abrinq, o Brasil possui 2,7 milhões de crianças e adolescentes trabalhando, ou 5% dos jovens.

A CPT (Comissão Pastoral da Terra), entidade que acompanha questões do campo, e o Sinait (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho), acabam de soar o alarme: as fiscalizações de trabalho escravo e infantil podem ser suspensas por falta de verba m 2017, período em que já vêm apresentando índices muito piores na comparação com anos anteriores.

O que dizem as entidades Dados levantados pela CPT apontam uma queda brusca no número de estabelecimentos fiscalizados em 2017. De acordo com a entidade, até 20 de junho, apenas 44 estabelecimentos foram fiscalizados. Em 2016 inteiro, o número foi de 204, menor que os 279 do ano anterior.

Com menos locais visitados, diminuíram também os resgates: a média mensal de trabalhadores libertados caiu de 63 mensais em 2016 para 15 em 2017. Do orçamento previsto pelo ministério para a fiscalização em 2017, um total de R$ 1,6 milhão, cerca de R$ 1,4 milhão já estaria “comprometido”, nas palavras do presidente do Sinait, Carlos Silva, ao portal G1.

“Não sobra quase nada, e esse quase nada só nos dá oxigênio até o final de agosto”, declarou. A verba já seria insuficiente de saída. Para o frei Xavier Plassat, coordenador da campanha da CPT contra o trabalho escravo, o orçamento “mínimo a ser garantido” para manter o trabalho de fiscalização de anos anteriores ficaria em R$ 3,2 milhões.

Segundo Plassat disse ao Nexo, não é apenas no âmbito federal que vem ocorrendo a diminuição da atividade fiscalizadora. As superintendências regionais, nos Estados, também registram uma queda na participação das ações, conforme a CPT apurou. Se antes, as instâncias regionais respondiam por cerca de 50 a 60% das diligências, agora contribuem com menos de um terço.

De acordo com a coluna de Lauro Jardim, em O Globo, um ofício enviado aos chefes de Fiscalização do Trabalho declarou que "os recursos das (superintendências) regionais estarão limitados em 30% dos valores previstos para o ano, enquanto o contigenciamento estiver vigente". Não haveria, por exemplo, dinheiro para despesas como alimentação e combustível dos fiscais.


A Comissão Pastoral da Terra atua em questões do campo desde a década de 70. Surgiu na ditadura militar, em reação às más condições de vida e violência contra trabalhadores rurais. Inicialmente ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), hoje se declara ecumênica, abrigando agentes de diversas igrejas além da Católica.

O que diz o ministério Em nota enviada ao Nexo, o Ministério negou a suspensão da fiscalização a partir de agosto.

Segundo o texto, a pasta vem buscando “readequar os recursos orçamentários de forma a impactar o menos possível áreas de atuação prioritárias, como a fiscalização e serviços ao trabalhador”. A nota explica que a readequação segue o contingenciamento de verbas determinado pelo governo federal.

Ainda assim, o órgão enfatiza que busca o “aperfeiçoamento” das ações de fiscalização, “de modo a obter maior eficiência nas atividades desenvolvidas”. A reportagem procurou confirmar os dados levantados pelo CPT, mas não obteve resposta do ministério.

Também foram solicitados mais detalhes sobre a readquação e o tamanho de seu impacto nas ações, mas a assessoria não retornou até o fechamento da matéria. Mais cortes a caminho Outros serviços do ministério estão também sob risco, entre eles a emissão da Carteira de Trabalho. A informação foi dada por duas fontes do ministério ao Globo.

O corte nos gastos administrativos da pasta chegaria a 30% do orçamento. A diminuição de recursos atravessa diversas áreas da administração federal: da emissão de passaportes pela Polícia Federal à redução de 44% que deixou o ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações com seu menor orçamento em mais de uma década.

O Brasil vive um ajuste fiscal aplicado pelo governo de Michel Temer que significou um corte de R$ 42 bilhões nos gastos previstos do Poder Executivo em 2017. No dia 30 de julho, deverá ser confirmado pelo governo federal o decreto de execução orçamentária de 2017. Um corte adicional de R$ 5,9 bilhões do orçamento já foi anunciado no mesmo mês.

No caso das verbas totais do Ministério do Trabalho, a previsão de R$ 812 milhões já havia sido reduzida para R$ 444,8 milhões, mas deve vir mais por aí. O histórico de 2017 até agora Em fevereiro, o presidente do Sinait, Carlos Silva, disse em entrevista ao site Justificando que havia “loteamento de cargos” na Secretaria de Inspeção do Trabalho, por iniciativa da “cúpula do ministério”.

De acordo com ele, o quadro de fiscais não estava sendo recomposto e havia “mais de mil cargos vagos”. Silva apontou que a situação prejudicava “grupos móveis de combate ao trabalho escravo”, entre outras tarefas da função. “De nove grupos móveis de fiscalização, hoje são três ou quatro”, disse o presidente do sindicato à época. “Não é porque não há demanda ou porque diminuíram as denúncias de exploração. É porque não tem gente suficiente para compor mais equipes.”

Plissat, da CPT, também aponta uma redução no empenho em se combater o trabalho escravo atualmente. Para ele, o contexto é influenciado pela bancada ruralista, que “procura convencer de que o trabalho escravo é uma ilusão”. Em março, o governo Temer ganhou na Justiça o direito de adiar a divulgação da “lista suja” do trabalho escravo, que reúne empregadores que teriam sido flagrados usando trabalhadores nessas condições. O gesto do governo atendeu a pressões de setores empresariais, que se sentiam inseguros juridicamente pelo que consideram uma definição “imprecisa” sobre o que é trabalho análogo à escravidão. Depois de um vaivém jurídico, o ministério divulgou a lista no final de março.

Fonte: Nexo, 26 de julho de 2017.