Na Roma antiga, o credor tinha o direito de aprisionar, mutilar e torturar o devedor que não pagasse a dívida no vencimento. Daí vem a expressão “execução” até hoje usada no processo civil e do trabalho, violência que foi superada pelos próprios romanos com a adoção da responsabilização patrimonial dos bens do devedores a proibição da execução pessoal.

Ao longo dos séculos, a prisão e a servidão por dívidas também foram proibidas. Atualmente, vários tratados internacionais, constituições e leis asseguram a dignidade da pessoa e proíbem o tratamento degradante e cruel, além de garantir um patamar mínimo de trabalho que assegure uma vida decente para o trabalhador e a sua família.

Mas parece que a cultura empresarial e jurídica brasileira tem dificuldade em capturar os diversos aspectos da questão e de transpor os ensinamentos para a prática.

A abolição da escravidão veio no tardio 1888, mas nunca foi totalmente implantada no Brasil. A Lei de Abolição limitou-se a declarar extinta a escravidão sem resgatar os trabalhadores nem implementar qualquer medida compensatória e de integração social. O silêncio da Lei disse muito mais do que saiu no diário oficial.

Propagaram-se ideias até hoje latentes na sociedade de que características biológicas poderiam comprovar superioridade física ou mental de um grupo sobre outros. Uma narrativa racista de que os trabalhadores imigrantes brancos dos séculos XIX e XX sofriam mais do que os escravos e de que os indígenas não gostavam de trabalhar. Semelhante discriminação recairia sobre os nordestinos que foram para o Sudeste e o Sul do país.

Os livros de direito ensinam que o trabalho é uma relação contratual, mas, no fundo, muitos pensam que emprego é favor e que qualquer serviço ‘é melhor do que nada’, mesmo um serviço que mutile mais pessoas do que guerras.

De acordo com o Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalhocriado pela parceria entre o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), desde 2012 constataram-se quase 4 milhões de acidentes de trabalho no país, incluindo mais de 14 mil mortes.

Apenas em Manaus, foram mais de 11,5 mil acidentes com cortes, lacerações, puncturas e esmagamentos no período de 2012 a 2016.

Nada mais perigoso que o torpor causado pela banalização da violência, um anestésico injetado pelos altos números de mortes no trânsito (47 mil por ano) e homicídios (cerca de 60 mil por ano). Se tanta gente morre todo dia, por que se preocupar com um trabalhador morto ou mutilado?

Porque independente da vida que se leva e das crenças filosóficas e religiosas de cada um, a humanidade não pode tolerar a desvalorização da vida e a redução de uma pessoa a uma vassoura ou a um facão. Todo um sistema jurídico internacional surgiu após a Segunda Guerra Mundial para manter a paz com especial consideração sobre o mundo do trabalho.

Empresas que mutilam e matam trabalhadores normalmente são empreendimentos doentes que se apropriam de lucros ilegais às custas de vidas humanas e jogam os custos para a sociedade. É a típica apropriação dos bônus com a socialização dos ônus.

O Judiciário e os demais agentes do direito devem ter isso em mente: um processo produtivo que esmaga trabalhadores deve ser mudado e severamente punido.

Nesse cenário, ausência de condenações, condenações irrisórias e tabelamento das indenizações são sinônimos, estimulando o mau empresário que, na ponta do lápis, chega à conclusão de que vale a pena trucidar membros e tolher vidas a obedecer à lei.

Confunde-se segurança jurídica com previsibilidade econômica. O conhecimento e a aplicação do direito não significam tabelamento de indenizações. Quando o mau empresário sabe que uma mão decepada custa, por exemplo, entre 5 e 15 mil reais, só protegerá as máquinas e mudará a organização do trabalho se o valor da condenação for significativamente maior que odo lucro obtido.

Em outras palavras, se o preço de uma máquina protegida for de 50 ou 100 mil reais, o empresário não mudará nada, pois lucrará com a roleta-russa do decepamento. Considerando ainda que o processo judicial pode se arrastar por anos ou que pode terminar em acordo por valor bem mais baixo do que os hipotéticos 15 mil, a má conduta é um instrumento eficiente de gestão de negócios.

Passou da hora de abandonar a era da pessoa-prego e entrar na era da pessoa-gente.

Fonte: Justificando, 05 de outubro de 2017.