Em meio a um país que insiste em esquecer suas memórias, principalmente quando se trata da história das minorias, Carolina Maria Ruy, jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical, organizou uma revista sobre o primeiro ato de contestação dos trabalhadores frente aos abusos cometidos pelo patronato, que impunha penosas jornadas de trabalho de até 14 horas, ausência de descanso semanal remunerado, assédios, exploração do trabalho infantil, dentre outras barbáries.
A publicação do Centro de Memória Sindical não se restringe a fazer emergir parte da história do Brasil. Tem função ampla, uma vez que remonta os acontecimentos e recoloca a questão do trabalhador no centro do debate, que se verticaliza em um período de aprovação da Reforma Trabalhista.
Na entrevista a seguir, Carolina Ruy fala sobre o movimento grevista, a questão da memória no Brasil, a organização atual da classe operária, as mudanças com a Reforma Trabalhista e o desafio de manter vivo o Centro de Memória Sindical. Confira:
A greve de 1917 emergiu na sociedade por meio de homens e mulheres que buscavam melhores condições de trabalho e, consequentemente, de vida. Em síntese, como era a vida desses operários?
Carolina – A greve ocorreu durante a Velha República, com a maioria da população brasileira camponesa sob total dominação oligárquica. Havia uma massa enorme de ex-escravos, recentemente libertados e sobrevivendo sem nenhum direito. Foi também uma época marcada pela chegada de imigrantes ao Brasil, que vieram trabalhar na lavoura, no café, e quando surgiram as primeiras fábricas, muitos foram para as fábricas.
A carga de trabalho chegava a 14 horas, inclusive aos sábados, e, às vezes, se tivesse necessidade, também no domingo de manhã. Segundo o José Luiz Del Roio, na entrevista que ele deu para o Centro de Memória Sindical, “o pessoal se arrebentava de tanto trabalhar, não tinha aumento e o custo de vida aumentava por causa da guerra que acontecia na Europa”. Não existia nenhuma garantia para o trabalhador, como Previdência Social ou caderneta de poupança.
Embora, desde a Primeira Constituição da República, de 1891, houvesse um Decreto que regesse as relações de trabalho, uma espécie de Lei Trabalhista, ela não era tão abrangente e, como não era divulgada e não havia fiscalização, não era aplicada.
Há uma tese muito interessante do historiador Felipe Pereira Loureiro, chamada “Nos fios de uma trama esquecida: a indústria têxtil paulista nas décadas pós-depressão, 1929-1950”, na qual ele levanta três elementos que caracterizavam a situação dos trabalhadores no início do século 20. São eles: O emprego de mulheres e menores em grande escala; As precárias condições de trabalho no interior das fábricas; A resistência da burguesia na concessão de benefícios mínimos para o proletariado. Segundo ele não havia ventilação nas fábricas, a iluminação era irregular, as instalações sanitárias eram, em sua maioria, sujas e fétidas e a ocorrência de mutilações era frequente.
Sob o conceito de modernização das relações do trabalho, o atual governo vem promovendo o desmonte dos direitos sociais, evidenciado na aprovação da Terceirização, no trabalho intermitente e nas reformas Trabalhista e da Previdência. Diante desse contexto, comparando à luta dos primeiros operários, dá para afirmar que, neste momento, o Brasil não está se modernizando, mas retrocedendo 100 anos?
Carolina – Não compartilho da opinião, defendida por muitos articulistas famosos, de que a CLT é velha e ultrapassada. Existem leis, nos EUA e na Europa, por exemplo, muito mais antigas e que são eficazes, por que se adaptam à evolução do tempo. Com o surgimento de tecnologias como as que substituem o trabalho braçal e as que possibilitam o trabalho remoto, faz sentido adaptar a legislação aos novos tempos. Então, a ideia de mudança não é maléfica em si mesma.
A questão é quais os interesses por trás das mudanças promovidas por estas reformas. Quando se fala em inviabilizar a sustentação dos sindicatos, está se apontando para uma sociedade em que, a exemplo do que ocorria no início do século, não haverá instituições com poder para fiscalizar se as condições de trabalho são adequadas. Neste sentido pode-se falar em um retrocesso do tamanho que você aponta.
Sei que, além da questão do financiamento sindical, as reformas trazem vários pontos inaceitáveis como regulamentação do trabalho intermitente e a liberação do trabalho de grávidas em ambientes insalubres, e me parece claro que o movimento sindical deve lutar com todas as forças contra isso. A questão do financiamento, entretanto, é particularmente delicada e ardilosa, porque todas as conquistas que os trabalhadores tiveram entre 1917 e 2017 foram através do movimento sindical. Se a organização dos trabalhadores enfraquecer ou acabar quem e com que legitimidade, vai lutar pela manutenção e ampliação dos direitos? Quem vai acompanhar as mudanças nas relações de trabalho, inerentes à dinâmica social?
Entretanto acho simplista dizer que voltamos ou voltaremos à mesma situação de 1917. Mesmo que a reforma entre em vigor da pior forma, não é possível se desfazer de cem anos de evolução. Há um ganho de organização, de experiência e de consciência social. Além disso, as condições de vida e de trabalho eram inteiramente diferentes das de hoje. Naquela época o Brasil era ainda escravista na sua prática. O João Guilherme Vargas Netto, levanta a importância do movimento sindical como um instrumento civilizador nas relações sociais. Para ele “o brasileiro hoje é muito mais cidadão do que era em 1917”.
Em um país em que o sistema público de educação está se deteriorando, lançando milhares de jovens na sociedade com poucos recursos para compreender a história e fazer a síntese do tempo em que vive, como é para você, coordenadora do Centro de Memória Sindical, resgatar e preservar a história de luta dos trabalhadores?
Carolina – Penso que esta questão abre várias frentes de debate. Uma é a educação, que é um problema no Brasil desde sempre. Sempre houve quem ganhasse política e economicamente com o baixo nível do sistema de ensino do Brasil. Há, então, desta forma, um grande interesse em mantê-lo baixo e rasteiro. Porque uma população inculta é uma população que não conhece sua história e se torna despolitizada, movida por necessidades e interesses imediatistas.
Outra questão é a juventude. Tenho a sensação, pelo que vejo e pelo que conheço, de que há um interesse por parte de muitos jovens em se engajar em causas sociais e na política, embora muitos sejam oprimidos pela falta de recursos financeiros, pelo desemprego e pela má qualidade da educação, como já falamos. Por exemplo, esses movimentos das ocupações nas escolas que assistimos em 2015 e 2016, mostrou uma grande força política da juventude. Mas, como você disse, o país não está proporcionando condições para desenvolver o potencial destes jovens.
Por fim, existe a questão, que é a que diz respeito ao meu trabalho, do resgate e da preservação da história dos trabalhadores.
Pode-se dizer que o triunfo circunstancial da agenda neoliberal, que dominou a década de 1990, fomentou um pensamento individualista, avesso aos movimentos sociais. Avesso, em especial ao movimento sindical, que é a base fundamental da luta social, e que atinge em cheio o coração do capitalismo, porque o trabalhador é quem produz. Esse pensamento ditou a regra nas universidades e é forte até hoje. O sindicalismo virou uma coisa “fora de moda”.
O ideal seria que o sindicalismo fosse abordado nas escolas e nas universidades de uma maneira mais profunda e realista. E, por outro lado, que os intelectuais estivessem mais presentes no dia a dia sindical, para enriquecer o debate.
Neste ponto me pergunto se também não há por parte dos sindicalistas certo descaso em relação à sua história, ao debate teórico e à possibilidade de se aproximar das escolas e universidades. Até há uma ideia geral que a formação é importante e deve ser incentivada. É por isso, inclusive, que os sindicatos mantêm o Centro de Memória Sindical. Mas não se criam condições reais para que isso se fortaleça.
Concluindo e voltando a pergunta: penso que o sistema precário de educação no Brasil, não apenas nas escolas, mas em todo ambiente cultural, prejudica o desenvolvimento e a formação dos jovens. Mesmo assim a juventude busca meios de conhecimento e participação. O conhecimento sobre a história dos trabalhadores é outro problema, que tange essa situação precária do ensino, mas que é mais ideológico do que de subdesenvolvimento. O que eu sinto no Centro de Memória Sindical é que existe muito material bruto, existe muita história acumulada. Uma bela história para a qual a sociedade, incluindo aí os sindicalistas, estão com olhos e ouvidos fechados.
O consumismo exacerbado, a massificação cultural, a espetacularização e a coisificação de tudo, dentre outros fatores, que são subprodutos do capitalismo fez diluir a consciência de classe dos trabalhadores?
Carolina – A dispersão dos trabalhadores enquanto classe está mais ligada ao liberalismo econômico, à diminuição do Estado, ao aumento do trabalho informal e ao desemprego, do que ao fator cultural. Eu disse que o sindicalismo está fora de moda nas universidades. Aí sim, por uma causa cultural. Mas os trabalhadores não deixam de se organizar e de lutar por seus direitos por esse motivo. Deixam por razões mais práticas, porque o próprio sistema econômico impõe uma desorganização, fragmentando as categorias, reduzindo os postos de trabalho, criando diferentes tipos de contratos etc.
A questão dos subprodutos do capitalismo e da consciência de classe é curiosa. A própria consciência de classe, do modo como estamos abordando aqui, como uma expressão da “luta de classe”, é também um subproduto do capitalismo. Isso porque ela se manifesta com mais intensidade onde o capitalismo é mais desenvolvido, porque neste ambiente as contradições sociais, como a desigualdade econômica, são mais acirradas. Na prática vemos que, de fato, o movimento sindical, bem como os movimentos sociais, são muito mais fortes nas maiores cidades.
O que é o Centro de Memória Sindical? Quais os desafios?
Carolina - É um arquivo histórico que preserva a memória oral, por meio de entrevistas e depoimentos de histórias de vida, prestação de serviço de resgate histórico, produção de livros e debates. Foi criado em 1980, no rescaldo das greves que começaram no ABC e capital paulista em 1978, quando um grupo de jornalistas teve a ideia de gravar depoimentos daqueles sindicalistas.
O CMS funcionou (como um arquivo e também fazendo publicações, cursos de formação, etc.) até o início da década de 1990. Depois disto, o CMS não chegou a fechar, mas ficou um tempo sem receber investimento e manutenção. Até que em 2010, as pessoas que se preocupam em preservar a história, como o Milton Cavalo, o Juruna, o Paulinho da Força, o João Inocentini e outros investiram na recuperação do Centro. Fizemos a mudança do Sindicato dos Têxteis para o terceiro andar do Sindicato Nacional dos Aposentado, onde o Centro ganhou um espaço de 90m² (vale dizer que o Centro de Memória foi fundado neste prédio, quando ainda era Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo), desde então temos feito todo um trabalho de recuperação do arquivo e promoção de atividades.
Hoje um dos principais desafios do CMS, além de se manter funcionando, é incentivar os sindicatos e os sindicalistas a organizarem seus arquivos e trabalharem no resgate de suas histórias. Há muita documentação espalhada pelos sindicatos, em posse de diretores que gostam do tema e guardam documentos, nas imprensas sindicais, nas secretarias, etc. Mas o ideal é que ela esteja organizada em uma instituição que pode dar o devido tratamento e disponibilizá-la para consulta da sociedade.
Como é estar à frente do Centro de Memória Sindical em um mundo de informação instantânea, onde a informação imediata – em grande parte superficial e até mesmo falsa – dominou o modo de transmissão de conhecimento?
É verdade que às vezes é frustrante realizar trabalhos tão minuciosos e com conteúdos inéditos ou raros e não ter o retorno massivo dos padrões das mídias sociais. Mas, como já falamos aqui, convivemos com esse problema da precariedade da educação e da cultura em nosso país. Entrei no Centro, em 2010, com esta consciência.
Tanto que quando o Milton Cavalo me chamou ele deixou claro que a situação do arquivo era de quase abandono e que sua intenção era fazer uma força tarefa para revitaliza-lo. Crescemos muito desde então. Penso que quem trabalha com objetos que fogem a lógica do imediatismo e da superficialidade, tem consciência de que a resistência à alienação faz parte do dia a dia.
Fonte:Brasil 247, 24 de novembro de 2017.