Como os governos Temer e Bolsonaro afastaram o Fies dos mais pobres

 

 

No papel – e durante as gestões dos ex-presidentes Lula e Dilma Roussefff –,o Fies (Financiamento Estudantil) tinha um objetivo claro: ajudar a financiar jovens pobres que se matriculavam em cursos privados de graduação. Mas na quinta-feira (7), ao abrir as inscrições para a leva de 2019, o programa parecia caminhar para a extinção. Além de estar mais enxuto, o Fies fechou cada vez menos contratos nos últimos dois anos – período que coincide com os governos Michel Temer e, agora, Jair Bolsonaro.

Número de contratos do Fies disparou de 76 mil em 2010 para 733 mil em 2014. Agora, serão apenas 100 mil contratos por ano

O programa do Ministério da Educação (MEC) é buscado por estudantes como Gabriela Morais, de 22 anos, que pretende cursar medicina veterinária. Ela já tentou contratar o Fies duas vezes e não conseguiu por causa da renda. “Meu pai é professor da Secretaria de Educação. Eles consideram que os professores ganham bem, mas não consideram que eles são superendividados, têm salários congelados há anos”, conta a jovem. “Tem muita gente que precisa e não consegue o Fies. Eles precisavam rever o programa.”

Com dificuldades, a família da Gabriela tentou pagar a faculdade por três semestres, mas a jovem precisou trancar os estudos. “A faculdade é integral, não dava nem para trabalhar”, explica. Com o sonho adiado, Gabriela conta que fica sem saber os rumos que sua vida vai tomar. Agora, ela pretende achar um cursinho gratuito para estudar e tentar passar na Universidade de Brasília (UnB), instituição pública que não cobra mensalidade.

Quando Gabriela buscou o Fies, o auge do programa já havia passado. O número de contratos disparou durante o primeiro governo Dilma – de 76 mil em 2010 para 733 mil em 2014, com juros abaixo da inflação, obtenção do financiamento a qualquer momento do ano e prazo de quitação maior. Passado o boom, a oferta de financiamento recuou ao patamar do início da década – serão oferecidos apenas 100 mil contratos por ano até 2021. Mas a demanda não para de crescer.

Em 2010, 4,7 milhões de brasileiros estavam matriculados em cursos superiores privados. Nos oito anos seguintes, a população do país cresceu em 9,4%, enquanto a quantidade de alunos em faculdades privadas aumentou em 42%. Essa fatia representa quase 3/4 dos mais de 8 milhões de matriculados no ensino superior atualmente.

Conforme estudo da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes) em parceria a empresa Educa Insights, 40% dos estudantes não têm condições de arcar sozinhos com as despesas da mensalidade nos cursos de graduação. Na opinião de 51% dos estudantes, as últimas mudanças no Fies dificultaram o acesso ao programa. Mais da metade dos estudantes nunca nem ouviu falar do P-Fies (quando o financiamento é feito por um banco privado).

Na família Chaves, o Fies foi um sucesso e um fracasso. Jaqueline, de 25 anos, conseguiu o Fies em 2012 e terminou seu curso de jornalismo, quatro anos depois, em uma instituição privada de Brasília. Hoje, paga prestações de um pouco mais de R$ 300 referentes ao financiamento com juros. Na época em que ela contratou o empréstimo, os juros eram subsidiados e as regras do programa eram bem mais flexíveis.

Já a irmã Julianie Chaves, de 20 anos, tentou contratar o Fies em 2017, após as principais alterações no programa, mas não teve sucesso. A estudante, então, optou por pagar a faculdade de fisioterapia. Ela ainda conseguiu uma bolsa parcial por ter tirado uma boa nota no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas ainda assim as mensalidades ultrapassam R$ 1.000.

Julianie sentou para conversar com o pai, que é servidor público, para ver se ele teria condições de arcar com os custos. “Ele fez as contas e disse que sim, mas estou vendo a hora que não vai dar mais”, lamenta. “O Fies, como está agora, não tem condições. Vejo pela minha turma mesmo – só tenho três colegas que conseguiram o Fies e ainda é preciso fazer um jogo de cintura”, critica a estudante.

Para o coordenador de Relações Internacionais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Leandro Tessler, o modelo do programa passou a ser ineficiente. “O Fies se transformou em uma modalidade de financiamento como outra qualquer. Deixou de ter função social.” Atualmente, o Fies pode ser contratado por quem tirou nota igual ou superior a 450 pontos no Enem, e que não tenha zerado a redação. 

As vagas ofertadas na modalidade governamental são limitadas e têm taxa de juros zero. Nesse caso, o interessado precisa ter renda familiar mensal per capita de até três salários mínimos. Para os estudantes que tenham renda entre três e cinco salários mínimos, existe a possibilidade de contratar a modalidade recente do P-Fies – com taxa de juros fixa de 6,5% ao ano. 

“O governo federal quis aumentar a participação das instituições privadas, porque eles acreditam na corresponsabilidade”, explica o consultor legislativo na área de financiamento estudantil, Ricardo Martins. Ele atuou juntamente com o deputado Alex Canziani (PTB-PR), relator da Medida Provisória 785/17, que reformulou o Fies. Para Martins, as mudanças tornaram sustentável o programa. Mas ele próprio admite que essa modalidade não deslanchou.

As instituições de ensino superior privadas têm demonstrado preocupação com a baixa adesão ao programa. Membros da Abmes tentam audiência com Bolsonaro para debater melhorias no programa. Segundo o assessor jurídico da entidade, Bruno Coimbra, o formato não tem despertado o interesse dos estudantes.

“As mudanças, principalmente do P-Fies, ainda são muito tímidas. Acreditamos que o governo precisa criar mais vagas, e os bancos privados e de fomento, abraçar a causa”, disse Coimbra. Para ele, o Fies deve ser visto como um investimento em educação. “Tem caráter social e de incremento para economia. Defendemos uma estruturação responsável do programa. Também não nos interessa alunos inadimplentes.”

Sob o governo Dilma, as instituições privadas recebiam repasses do governo federal para bancar os alunos do Fies. O grupo Kroton-Anhanguera foi a empresa que mais recebeu pagamentos do governo federal em 2014. Foram repassados mais de R$ 2 bilhões para 12 mantenedoras do grupo.

Segundo Paulo Meyer, especialista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o programa tinha tantas facilidades que muitas instituições privadas incentivavam os estudantes a contratarem o financiamento mesmo podendo pagar a mensalidade. Por isso, o orçamento multiplicou e o número de contratos nesse período também.

Mas a média anual de aumento de estudantes na rede privada passou de 5%, entre 2003 e 2009 para 3% a partir de 2010. Já as mensalidades aumentaram desde 2011, em média, 2,9% ao ano, como apontaram dados elaborados pela CM Consultoria com base na Análise Setorial do Ensino Superior Privado da Hoper Educação. Assim, os gastos do governo federal saltaram 647% desde 2011, enquanto o número de contratos cresceu quase a metade, 374%. No período, foram R$ 24 bilhões de recursos do Tesouro e 1,2 milhão de novos contratos.

Modelo internacional

No novo formato do Fies, o estudante pode pagar o financiamento no futuro de acordo com a renda familiar. O desconto será feito direto em folha no caso dos recém-formados que tiverem emprego formal. Quem não estiver empregado, terá descontada apenas uma parcela mínima de mesmo valor cobrado durante o curso. Mas segundo Meyer, do Ipea, os estudantes ainda têm muito receio de firmar contratos, principalmente porque não entendem como o programa funciona.

No ano passado, o governo Temer pretendia incluir 310 mil novos alunos no Fies. De acordo com o Ministério da Educação, das 100 mil vagas ofertadas na modalidade governamental com taxa de juros zero, foram firmados 82 mil contratos. Já na modalidade denominada de P-Fies, mais de 2.500 contratos estão em andamento.

A estratégia do governo federal para o segmento inclui também o Programa Universidade para Todos (Prouni), que distribui bolsas em instituições particulares para estudantes de baixa renda. Desde 2005, já atendeu a mais de 2,4 milhões de estudantes, sendo 69% com bolsas integrais – o desempenho no Enem serve como um dos critérios de seleção.

Mais mudanças nas regras do Fies passaram a valer no início de 2018 para contratos novos. Os estudantes com financiamento em andamento poderão migrar aos poucos.
A principal alteração foi o fim da carência de 18 meses. O estudante deverá iniciar o pagamento no mês seguinte ao término do curso, desde que esteja empregado. O prazo máximo para pagamento será de 14 anos.

O dinheiro será descontado diretamente do salário, por meio do eSocial do INSS. Com isso, o governo federal espera a redução da inadimplência no cumprimento dos contratos, limitação do risco da União, melhora nas condições de financiamento e racionalização das amortizações. De acordo com o MEC, a taxa de inadimplência é de quase 50%. Mais de 450 mil ex-alunos na fase de amortização não estão em dia com o pagamento das parcelas.

Com informações da BBC News Brasil