O contágio pela Covid-19 caracteriza doença ocupacional?
Um dos temas mais instigantes que a pandemia tem suscitado diz respeito à relação entre doença ocupacional e a Covid-19, que gera impactos tanto na saúde do trabalhador quanto nos recursos de seu empregador, afetando ainda o orçamento da previdência social, haja vista o pagamento do auxílio previdenciário.
A discussão sobre o assunto surgiu com a Medida Provisória 927/20, que, em seu artigo 29, estabelece que os casos de contaminação pelo coronavírus não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento de medida liminar em sede de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) ajuizadas contra a referida MP, por maioria, suspendeu o artigo 29, bem como o artigo 3º, que limitava a atuação de auditores fiscais do trabalho à atividade de orientação.
Prevaleceu, nesse julgamento, a divergência aberta pelo ministro Alexandre de Moraes, segundo a qual as regras adotadas por aqueles artigos não são compatíveis com a finalidade da medida provisória, cuja ementa "dispõe sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19), e dá outras providências". No tocante, especificamente, ao artigo 29, o ministro Alexandre de Moraes assinala que ele ofende inúmeros trabalhadores de atividades essenciais que continuam expostos ao risco.
O entendimento esposado pela Suprema Corte, na espécie, não implica a presunção de que os casos de contágio pela Covid-19 são considerados, automaticamente, como doença decorrente do trabalho, ou seja, ocupacionais.
O dispositivo legal em apreço não é o primeiro que trata dessa matéria. Com efeito, a Lei nº 8.213/91, em seu artigo 21-A, considera acidente que gera incapacidade para o trabalho a atividade da empresa apta a provocar o estado mórbido motivador da incapacidade, desde que caracterizado o nexo técnico epidemiológico entre o trabalho e esse estado.
Entende-se razoável que esse dispositivo compreende, também, a situação do novo coronavírus. Apesar de se cuidar, na Lei 8.213, em seu artigo 20, §1º, "d", de doenças endêmicas, esse dispositivo adequa-se, por analogia, à Covid-19, eis que o objetivo da norma ainda é mais adequado em um cenário de pandemia, haja vista a dificuldade de estabelecer o momento e o local em que houve a contaminação — como assinala Letícia Santos Venâncio de Souza.
Nesse caso, haverá presunção de existência desse nexo, como decorrência das atividades desempenhadas pela empresa.
Vislumbra-se, nessas circunstâncias, a responsabilidade objetiva dos empregadores pelas moléstias adquiridas por seus empregados relacionadas com seu trabalho. Essa é concepção do Supremo Tribunal Federal, expressa no julgamento do Recurso Extraordinário 828040. Ora, desempenhando o empregado atividade de risco — como é o caso dos profissionais de saúde no contexto da pandemia que vivenciamos —, aplica-se a teoria do risco, que tem como consequência a responsabilidade civil objetiva do empregador. Esta dispensa comprovação de culpa, mas não a necessidade de demonstração do nexo causal.
Em relação ao ônus da prova, consoante o artigo 818, II, da CLT, caberia ao empregado quanto ao fato constitutivo de seu direito, ou seja, que o contágio pela Covid-19 se deu em razão de sua atividade na empresa. Mas, nessa situação especial, cabe ao empregador demonstrar que o contágio não é consequente das atividades profissionais do empregado, sendo, pois, o ônus probatório invertido. Tal hipótese está prevista no §1º do artigo 818 da CLT, segundo o qual, em face da peculiaridade do caso, com impossibilidade ou excessiva dificuldade de cumprir o encargo pertinente a tal ônus, este poderá ser atribuído de modo diverso.
A esse respeito, o TST, por maioria, considerou fora de propósito exigir que o empregado comprove a relação entre a contaminação por coronavírus e o trabalho, ante a impossibilidade de definir com precisão a circunstância em que a doença tenha sido contraída. Como expressa Letícia Santos Venâncio de Souza, essa decisão "sinaliza que seria encargo do empregador comprovar que a doença não foi adquirida no ambiente de trabalho ou em razão dele, invertendo o ônus probatório no caso específico da infecção pelo coronavírus". Vale lembrar que a lei considera que uma doença é ocupacional quando a contaminação pela exposição ou contato direto do empregado resulta da natureza do trabalho, se o empregador não tiver adotado as medidas preventivas e de contenção da doença, nem observado as normas de saúde e segurança do trabalho, desconsiderando as orientações das autoridades de saúde.
Ao reconhecer a Covid-19 como doença ocupacional, o Supremo propicia que os trabalhadores de setores essenciais que forem contaminados tenham acesso a benefícios previdenciários, como o auxílio-doença.
José Soares Filho é desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 19ª Região e professor da Universidade Católica de Pernambuco.
Revista Consultor Jurídico