Reserva do trabalhador, FGTS corre riscos reais com queda na arrecadação
Fonte de financiamento de moradias populares e outros programas sociais, o Fundo sofre sucessivos saques, que podem tornar inviável sua sustentação, alertam economistas e dirigentes do próprio governo
(Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)
O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) — uma reserva de dinheiro dos trabalhadores e também fonte de financiamento de moradias populares e outros programas sociais — corre riscos reais de arrecadação. Sucessivos saques destes recursos podem tornar inviável a sustentação do Fundo, como alertam economistas e dirigentes do próprio governo.
De acordo com análises do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), os saques do FGTS superam os depósitos. "Em 2017, a arrecadação ficou em R$ 123,5 bilhões contra R$ 162 bilhões em retiradas, resultando em um fluxo negativo de R$ 38,5 bilhões", destaca o economista do Dieese e assessor da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no Grupo de Apoio do Conselho Curador do Fundo, Clovis Scherer.
Em 2019, os depósitos foram de R$ 129 bilhões ante R$ 151 bilhões em saques — uma diferença de R$ 22 bi. Em entrevista à CUT, Scherer observa que este desequilíbrio já se confirma este ano: quando analisado o primeiro trimestre, a arrecadação do FGTS foi de R$ 54 bilhões e os desembolsos chegaram a R$ 78 bi.
Os dados também preocupam o Executivo federal, que identifica dificuldades de caixa para atender novas demandas sem comprometer a sustentabilidade do FGTS, a longo prazo. “É inegável que a capacidade de viabilizar saques extraordinários é limitada. O Fundo não pode continuar reduzindo ativos de forma tão volumosa a cada ano, sob risco de se tornar inviável até mesmo operacionalmente”, afirmou o diretor do Departamento de Gestão de Fundos do Ministério da Economia, Gustavo Tillmann, ao jornal Valor Econômico. “O cobertor tem um tamanho. Não dá para atender todas as frentes”, acrescentou o dirigente.
Segundo balanço divulgado pelo governo, só os saques do FGTS Emergencial somam R$ 37,8 bilhões (para 60 milhões de pessoas). No segundo trimestre, foram R$ 18,3 bilhões pagos a 23,8 milhões de beneficiários.
“É evidente que as pessoas precisam ser assistidas; especialmente, em uma crise econômica como esta que estamos enfrentando. Porém, é preciso preservar o FGTS, que é um patrimônio dos próprios trabalhadores”, pondera o presidente da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa (Fenae), Sérgio Takemoto. “Utilizar indiscriminadamente os recursos do Fundo com o argumento de aquecer a economia é colocar em alto risco uma reserva que é dos empregados, além de comprometer investimentos em programas sociais, como o de habitação popular, por exemplo”, reforça Takemoto.
PROGRAMAS SOCIAIS — Maior fundo privado de investimento público da América Latina e um dos maiores do mundo, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço do Brasil chegou ao final de 2019 com uma arrecadação total de R$ 541 bilhões em ativos. Destes, R$ 385 bilhões estavam aplicados no financiamento de habitação, saneamento, infraestrutura e saúde.
Nada menos que 92% dos municípios recebem algum tipo de investimento com recursos do FGTS. Segundo o Dieese, dos R$ 67 bilhões contratados em 2019, R$ 64,4 bilhões foram para habitação, R$ 1,5 bilhão para saneamento e R$ 829 milhões para infraestrutura de transportes. Outros R$ 570 milhões foram destinados ao setor de saúde. O acumulado de recursos nas contas dos trabalhadores chegou, no final do ano passado, a R$ 422 bilhões.
Cláudio da Silva Gomes, também representante da CUT no Conselho Curador do Fundo, destaca o fluxo negativo de R$ 22 bilhões registrado ano passado. “A crise econômica e a alta no desemprego afetam negativamente as contribuições e fazem aumentar os saques do FGTS, principalmente por demissão sem justa causa”, diz. “Mas, em 2019, o governo criou o saque-aniversário [de R$ 500 para cada trabalhador], que respondeu por R$ 26 bilhões em desembolsos. E ainda há o saque do FGTS Emergencial, que por si só representa uma saída de mais de R$ 30 bilhões do Fundo”, ressalta.
IMPACTO NA SUSTENTAÇÃO — Sobre a declaração de Gustavo Tillmann, diretor do Ministério da Economia, Cláudio Gomes comenta que essa preocupação tem sido pautada “há tempos” no Conselho Curador do Fundo, pelos representantes dos trabalhadores.
“São dois processos preocupantes: o primeiro é a debilidade da economia e do mercado de trabalho, que corrói as receitas e aumenta as despesas. O segundo é a criação de novas modalidades de saques, muitas vezes com finalidades de curto prazo sem considerar adequadamente o impacto na sustentação do Fundo”, critica Gomes, ao observar que chegaram ao Congresso projetos de leis que ampliavam as modalidades de saque do Fundo.
“É preciso estar alerta e defender o FGTS em suas duas dimensões: a de proteção social do trabalhador e a de promotor do desenvolvimento social e econômico do país”, defende Gomes.
EM TRAMITAÇÃO — Relator do Projeto de Lei 4.085/2020, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM) limitou, no parecer ao PL, o saque do FGTS Emergencial a uma só parcela de R$ 1.045. Esta era a proposta do governo na Medida Provisória 946, que perdeu a validade no último dia 4 depois de ter sido alterada no Senado, ampliado as modalidades de saque, o que impactaria ainda mais o Fundo.
“Não tem espaço para mais. Se ampliar mais, vou acabar com a liquidez e com a capacidade de gerar emprego na construção civil”, explica Marcelo Ramos. Além de passar pelo Plenário da Câmara dos Deputados, o PL 4.085 terá de ser votado no Senado. Caso não sofra modificações pelos senadores, seguirá à sanção presidencial, quando os saques emergenciais do FGTS serão restabelecidos.
Rita Serrano, representante dos trabalhadores da Caixa no Conselho de Administração (CA) do banco, também analisa a situação do Fundo de Garantia como “preocupante”. “Esvaziar o FGTS, seja com saques por causa do desemprego altíssimo ou com saques sucessivos para que o trabalhador possa resolver seu problema imediato, no médio prazo pode significar a falta de recursos para investimentos que poderiam realmente gerar empregos”, ressalta.
"É necessário substituir medidas paliativas por políticas públicas que efetivamente estimulem a criação de empregos e contribuam para a estabilização e o crescimento sustentado da economia", emenda o presidente da Fenae, Sérgio Takemoto.
MUDANÇAS NA HABITAÇÃO — Outras mudanças no FGTS poderão ocorrer para que o governo viabilize o programa “Casa Verde e Amarela” em substituição ao Minha Casa Minha Vida. O Executivo está negociando com a Caixa Econômica e o Fundo uma alteração na forma de remuneração do FGTS para o banco, além de uma redução do custo do passivo do Fundo de Garantia para a Caixa.
As mudanças ainda precisam ser aprovadas pelo Conselho Curador do FGTS. Mas, a ideia do governo é que o Fundo deixe de pagar à vista a remuneração da Caixa para diluir a quitação ao longo do contrato. O argumento é o de que, como o pagamento de algo em torno de R$ 6 bilhões à Caixa passaria a não ser mais no ato da assinatura do contrato, o FGTS teria mais recursos no curto prazo.
FÔLEGO — Somente neste ano, conforme informações do Fundo, o FGTS vai abrir mão de mais de R$ 40 bilhões — recursos que estão sendo injetados na economia por conta da pandemia do coronavírus. Além dos R$ 37,8 bilhões já gastos com o pagamento do saque emergencial de R$ 1.045, outros R$ 3,4 bilhões estão relacionados à ausência ou redução de contribuições devido à possibilidade dada pelo governo de as empresas suspenderem contratos de trabalho e reduzirem jornada.
Como avaliou Gustavo Tillmann ao jornal Valor Econômico, é necessário dar um tempo para o FGTS se recuperar financeiramente para que não haja mais diminuição nos investimentos em habitação, saneamento e infraestrutura urbana, por exemplo. “O momento agora será de recuperação. O Fundo demonstrou sua resiliência ao oferecer ajuda para a economia ganhar tração em 2017 e 2019 e para superar os terríveis impactos da pandemia em 2020; mas, essa capacidade passa a encontrar restrições. É preciso um período de estabilidade normativa, sem novos movimentos de saque, para que o modelo se reestruture e ganhe fôlego novamente”, afirmou Tillmann.
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