Contaminado pelo rentismo, o Estado limitou-se a oferecer paliativos. É hora de outra postura: políticas que garantam o direito ao trabalho e reconheçam sua diversidade.
Por sua tardia trajetória constitutiva, o capitalismo no Brasil apresentou especificidade e sentido distintos nas últimas 13 décadas. Dois movimentos históricos estruturais, em especial, podem ser brevemente destacados.
O primeiro refere-se ao processo de modernização da estrutura produtiva vigente entre as décadas de 1890 e 1980. Por conta deste processo, foi possível emergir uma sociedade urbana de classes diferente e superior ao agrarismo mercantil-escravista prevalecente durante o período imperial (1822-1889).
O segundo movimento estrutural do capitalismo no Brasil é o que se encontra em curso desde os anos 1990, produzindo uma sociedade desclassada, destroçada pelo aniquilamento da burguesia industrial e do operariado e classe média assalariada. Ademais da perda de vitalidade econômica, combinada com o desmonte da estrutura produtiva complexa, diversificada e integrada, assiste-se ao processo de desmodernização capitalista e ao declínio nacional.
Se, durante o Império, a renda nacional dividida por seus habitantes crescia apenas 0,3% como média anual, as primeiras dez décadas de contínua modernização capitalista possibilitaram que o Produto Interno Bruto per capita aumentasse ao ritmo médio anual de 2,2% (7,3 vezes superior ao período imperial). Na atualidade da desmodernização capitalista, a renda nacional por brasileiro aumenta apenas 0,6% como média anual, o que equivale a apenas 27% do verificado entre as décadas de 1890 e 1980.
No ano de 1900, por exemplo, quando o Brasil representava apenas 0,8% do PIB mundial, o mundo do trabalho contemplava somente 8% do total dos ocupados na condição de assalariados. Naquela oportunidade, 71% do total das ocupações do país se localizavam nas atividades agropecuárias, enquanto os serviços respondiam por 16% e a indústria acoplada ao artesanato, também por 13%.
Em relação a isso, Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo, 1942) identificava a existência de dois setores econômicos com dinâmica distinta. De um lado, o setor orgânico do capital que conformava o núcleo central da produção em grande escala para o exterior (exportação e importação) e, de outro, o setor inorgânico absorvedor da população trabalhadora sobrante nas atividades de subsistência e na economia popular.
No ano de 1980, o Brasil respondeu por 3,2% do PIB mundial, isto é, quatro vezes mais que em 1900. O emprego assalariado alcançou 66% do total da ocupação (8,3 vezes mais que em 1900) e as atividades tipicamente capitalistas que funcionam exclusivamente segundo a lógica do lucro responderam por 53,5% do total da ocupação do país (8,9 vezes maior que em 1900).
Diante do predomínio do processo de modernização capitalista, as atividades de subsistência e de economia popular registraram trajetória decrescente por serem – em boa medida – metamorfoseadas em organizações tipicamente capitalistas. Para o ano de 1980, por exemplo, a economia popular e de subsistência absorveu 40,1% do total dos postos de trabalho do país (55,4% inferior a 1900), enquanto o setor público que não opera segundo a lógica do lucro ocupou 6,4% da população trabalhadora (3,2 vezes mais que em 1900).
A partir de 1990, contudo, as atividades tipicamente capitalistas no Brasil passaram a perder participação relativa no total da ocupação, indicando o esvaziamento de sua vitalidade lucrativa, cada vez mais dominada pela lógica do rentismo e da herança como correia de transmissão da riqueza velha a asfixiar a geração de riqueza nova. Sobre o rentismo movido pelas altas finanças, extração mineral e vegetal e acionistas e beneficiários de privatizações, Brett Christophers, no livro Rentier Capitalism (2020), destacou que a renda seria o pagamento ao rentista somente por controlar algo valioso que derivaria da propriedade, posse ou controle de bens escassos gerados por condições de concorrência limitada ou inexistente.
Sobre a desfuncionalidade da herança no capitalismo, o referenciado economista britânico John Stuart Mill (1806-1873) anotou em Princípios de Economia Política: “Não posso admitir que um pai ou mãe devam a seus filhos, simplesmente por serem seus filhos, e para enriquecê-los sem a necessidade de trabalharem, tudo aquilo que possam ter herdado, ou, pior ainda, tudo aquilo que possam ter adquirido em vida.”
Para o Brasil do ano de 2021, responsável por apenas 1,6% do PIB mundial (50% inferior ao do ano de 1980), as atividades tipicamente capitalistas empregaram 46,1% do total dos ocupados (13,8% a menos que em 1980). O setor público absorveu 9,9% da população trabalhadora (54,7% superior ao ano de 1980) e a economia popular e de subsistência contemplou 44% (9,7% mais que em 1980).
É neste novo contexto nacional que o arsenal de políticas públicas precisa ser profundamente reconsiderado. Ao contrário do passado de modernização, quando coube ao Estado atuar fortemente em prol das atividades tipicamente capitalistas, a marcha atual de mais de três décadas contaminou o Estado, que se especializou na gestão social que posterga a catástrofe produzida pelas heranças improdutivamente preservadas pelo sustentáculo da riqueza rentista.
Políticas públicas que dialoguem com a efervescência da economia popular e de subsistência imporiam a modernização estatal, compatível com as exigências e especificidades da produção e distribuição mercantil, do crédito, tecnologias e outras modalidades distintas das urgências das atividades tipicamente mercantis. Foi por compreender as diferenças marcantes da agropecuária capitalista em relação à familiar que, na crise da dívida externa, o Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários foi criado em 1982 (Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário, em 1985, Ministério da Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário, em 1999, e, atualmente, Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar).
Da mesma forma, as diferenças entre a economia popular e de subsistência e as atividades tipicamente capitalistas são imensas, especialmente no meio urbano. Para os que não acreditam ser o capitalismo salvador da pátria, segundo os conhecedores do quanto a economia brasileira é híbrida e plural, o caminho da insensatez pode ser interrompido, consagrando a hora e a vez da economia popular no Brasil.
Marcio Pochmann é economista, pesquisador e político brasileiro. Professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, entre 2007 e 2012, e secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004.
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 13/02/2023
DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/o-que-fazer-diante-da-informalidade/