Há muita coisa sendo escrita sobre a opção evangélica pelo bolsonarismo. Muitas teses, interessantes por sinal, já foram esboçadas. Sem querer ser repetitivo, tampouco inaugurar um ineditismo, gostaria de sugerir um quádruplo foco, o qual perpassa pelas ideias de memória, pela “redoma”, pelo que estou provisoriamente chamando de novos processos e por fim pelo viés hermenêutico. Especialmente neste texto concentrarei no primeiro foco, o da memória.

 

Quando penso em memória, não estou trabalhando com arquétipos individuais, mas sim de um grupo social. Maurice Halbwachs já afirmava que a identidade de um grupo, similar ao indivíduo, era mais definida por aquilo que lhe é inconsciente do que consciente. Nesse processo de tessitura do inconsciente coletivo se faz presente essa memória fundacional, arquetípica.

 

Tal perspectiva nos remete a falar do puritanismo inglês, berço espiritual do surgimento de parte das denominações protestantes históricas, não por acaso as praticantes de um protestantismo de missão, como os batistas e metodistas. O puritanismo foi um movimento sócio-religioso de cunho espiritual que apregoava uma piedade orgânica, sem a enviesada interferência estatal, uma vida de santidade e obediência aos mandamentos bíblicos, como resposta à Reforma inglesa, da qual emergiu a Igreja Anglicana.

 

No auge desse período puritano Voltaire esteve em Londres. Em uma de suas Cartas Inglesas, o filósofo francês protesta pela ausência de pub’s abertos no domingo. Ele querendo tomar uma bebida, reclamou, com seu característico sarcasmo, do impedimento por não ter onde comprar, por conta do movimento puritano que sacralizou o domingo.

 

O puritanismo deixa após si três principais legados que são também problemas.

 

A primeira herança é a confirmação de uma eleição especial, de gente que se acha mais próxima de Deus do que os demais. A própria existência do destino manifesto, que norteou os peregrinos na chegada à Nova Terra, se faz presente no ethos norte-americano revelado na construção identitária de que aquela nação é especial, diferente de todas as demais. Sua produção cultural manifesta claramente os Estados Unidos como uma espécie de “Capitão América” do mundo.

 

O resultado desta eleição, deste destino manifesto? A colonizadora pretensão de saber o que é melhor para todo o resto do mundo, além do empreendimento de certo tipo de messianismo. O mundo se torna tanto subserviente quanto expectativa. Este traço norteou a chegada do protestantismo no Brasil, vindo de missionários americanos. Dessa dependência estadunidense o protestantismo no Brasil nunca se desvencilhou. Aqui reside parte da explicação para as dificuldades com o ecumenismo e com o diálogo inter-religioso, tendo em vista que esses grupos se acham divinamente superiores. Também aqui, nesta especial eleição reside o reforço na expectativa messiânica.

 

Esta altivez encontrada justamente entre os que deveriam ser humildes de espírito explica parte da postura inarredável de muitos evangélicos, que optam pelo negacionismo mesmo sendo confrontados ora pela ciência, ora pela realidade.

 

A segunda herança do puritanismo que nos interessa neste momento foi o legalismo. Se, em um primeiro momento, a santidade almejada espelhava uma piedade sincera, com o passar do tempo sobrou o regramento. Sem a vivência do amor, a santidade se reduz a mero legalismo. Um cristianismo de pautas morais, de maximização de costumes sempre se torna presa fácil para ideologias políticas. Como lembra Claude-Gilbert Dubois:

 

“Maquiavel percebeu bem como pode ser útil um discurso moral fundamentado na tradição mas não efetivamente operativo, pela influência que exerce sobre o imaginário, contribuindo para assegurar o poder. O objetivo é fazer os outros acreditarem na nossa causa. Se falta força, o príncipe recorre à astúcia; as ideias de império, cruzada, defesa da cristandade, religião são cortinas do estrategista político realista, com efeito sobre os ignorantes, manipulados em seu benefício.”[1] (grifo nosso).

 

Não foi isso que vimos ao longo de quatro anos? A cooptação de temas sensíveis para os religiosos como meio de manipulação para que os destinatários da mensagem sejam envolvidos na causa. Não importa se o “príncipe” pouco encarna, vive, representa os valores a serem defendidos; importa que estes nevrálgicos pontos estejam no seu discurso, ainda que pese a incoerência e a visível contradição com a prática.

 

O terceiro e último legado que perfaz essa memória fundacional evangélica é a ênfase do puritanismo em sua visão de mundo dicotômica. Richard Niebuhr tinha qualificado esse tipo de expressão da fé cristã como Cristo em oposição à Cultura (Cristo x Cultura). Esse maniqueísmo protestante que coloca a igreja contra o mundo, que sacraliza os de dentro e demoniza os de fora, que chega a desprezar as artes pelo movimento iconoclasta, ganhou novas feições, no final do século XX, com a propagação pelo Seminário Teológico Fuller e por Charles Peter Wagner, da noção de batalha espiritual, da luta entre anjos contra demônios, entre Deus e o Diabo.

 

Ora, quando a extrema direita adentrou com seu conceito de guerra cultural, da luta do bem contra o mal, ela encontrou terreno fértil e preparado justamente entre os evangélicos. Foi uma espécie de “Fator Melquisedeque” às avessas. O resultado é esse clima de Fla x Flu em permanente looping que estamos vivendo, em que o outro se torna inimigo, não um contrário, pois ele estaria, nessa concepção, imbuído do mal. Neste estágio, os cancelamentos, as rupturas, não são só possíveis, como desejáveis.

 

O que tentei mostrar neste texto, elencando três aspectos que penso ser decorrentes do puritanismo, é a condição estrutural que o Bolsonarismo encontrou para crescer. A igreja evangélica se tornou um grupo hospedeiro por excelência para o vírus bolsonarista. E esta foi a primeira pandemia que enfrentamos: a sócio-religiosa.

 

[1] DUBOIS, Claude-Gilbert. O IMAGINÁRIO DA RENASCENÇA. Brasília: Editora UNB, 1995, p. 178.

 

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Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é mestre e doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas. 

 

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