Sérgio Dusilek *

 

O que explica a opção evangélica pelo bolsonarismo? Desde o último texto, não obstante tantas contribuições já terem sido dadas, vimos perseguindo o que seriam possíveis explicações para um fenômeno tão anti-Evangelho como Bolsonaro ter tanta aderência justamente entre os que se dizem evangélicos. As pesquisas indicaram que, nas últimas eleições, quase 70% deste segmento religioso declarou voto no ex-presidente.

 

Assim sendo, uma segunda explicação para esta opção está no que chamo de efeito redoma. Fruto, em parte do puritanismo e em parte do fundamentalismo, o comportamento do evangélico médio é de trincheira: o mundo está contra ele, numa oposição de caráter voraz. Cabe então o isolamento, a cultura da preservação, a vida em uma gaiola religiosa, a submissão a uma redoma. A redoma seria uma condição para a sobrevivência, a ponto de evitar sua distração com a Babilônia hodierna, o que, segundo muitos resultaria na perda da sua salvação.

 

Aqui é preciso fazer um destaque. A doutrina da salvação de boa parte da igreja evangélica é esquálida. O sacrifício de Jesus na cruz, sua obra salvífica, é reduzido a um simples ato volitivo pelo erro. Um pecado passa a anular toda a Graça que transbordou no Calvário. Sem a tranquilidade, sem a paz que a Graça de Jesus outorga, sobra o medo e a manipulação das consciências a partir dele. Aliás, não seria o medo o princípio operativo da extrema direita, tanto para coação quanto para adesão as suas ideias?

 

O fato é que a redoma explica o apoliticismo da Igreja que, se em um primeiro momento representou a negação do espaço público, em um segundo momento foi particularizado no pensamento de esquerda. Ideológico, segundo estes, é o que a esquerda pensa e produz. A consequência? A naturalização do pensamento conservador, de direita, e uma criminalização do pensamento progressista.

 

Desta feita, o apoliticismo se caracteriza hoje pela ausência do debate, do espaço para conscientização, para fundamentação da percepção política, seja ela qual for. Consciências não conscientes são facilmente capturadas pelo medo e pelas mais contraditórias e não-críveis informações. Falta consciência crítica até para descartar, sem necessidades de maiores verificações, o que é fake news. A lógica passa a ser: quanto mais incrível, mais crível. O caso Vitor Belfort, exímio lutador, e o suposto “General Benjamin”, exemplifica esta questão.

 

Diante deste aspecto, a figura pastoral continua tendo importância. Não mais determinante como antes, mas segue balizando opiniões. Ora, pastorados longevos tendem a influir na formação de consciências. Defesas, de púlpito, da genérica pauta de costumes travestida de princípios bíblicos, podem influenciar o voto. Ainda mais agora, com a inserção da modalidade pastor-celebridade: a turma da caixinha de perguntas, os chamados influencers, reis que são das platitudes, sempre falando com a profundidade das piscininhas de plástico das varandas. A tônica entre estes, especialmente os que se reúnem sob o clarim da GKPN (Global Kingdom Partnership Network), é de incompatibilizar a fé cristã com posicionamentos mais à esquerda. Para os tais, é impossível ser crente e de esquerda…

 

Outro elemento que compõe essa redoma é o ativismo religioso, vendido nas igrejas como sinal de vitalidade espiritual. Igreja viva, segundo tais apologetas, é igreja que não para, uma espécie de Citibank religioso (“The Citi never sleeps”, dizia o dístico da propaganda). Este excesso de atividades priva o indivíduo religioso da reflexão, tolhendo o tempo para leitura, inclusive da própria Bíblia. Faz-se muito para Deus, pouco com Deus e quase nada que tenha origem, que seja realmente de Deus. Não é à toa que se tem uma geração de evangélicos que desconhecem o texto bíblico, que chamam pastores que pregam justiça social a partir dos inúmeros textos de profetas da Bíblia, de “comunistas”.

 

Por fim, lembrando que a lista aqui apresentada não se esgota em si mesma, há uma incômoda afinidade do modo organizacional da igreja com o militarismo. Antes de abordarmos as questões eletivas tal como se deram na história recente do país, no vergonhoso apoio de lideranças evangélicas à Ditadura Civil-Militar, é preciso falar deste modo constitutivo. Freud mesmo apontou para as similaridades entre o Exército e a Igreja, usados como exemplos, para explicar a psicologia das massas, a diluição da identidade pessoal em prol de uma coletividade que normalmente terá um grau civilizatório menor do que a de um indivíduo. O que está em jogo aqui, segundo Freud, é um modelo hierárquico que se impõe nas relações sociais. Nada mais estranho ao que parece ser um modelo de rede presente nos evangelhos.

 

A perspectiva piramidal enseja a manipulação das massas, da coletividade. Inclusive na instalação de cercas, tornando a redoma intransponível e punindo severamente o transgressor.

 

O problema das redomas é que elas forçam a convergência e alijam os divergentes. Até onde sabemos, toda unanimidade ou é burra, ou é falseada, hipócrita. Infelizmente esta “convergência”, esta unidade que brota após o expurgo dos críticos, é usada para fins eleitoreiros.

 

Além disso, as redomas impedem o fluxo da comunicação. Como falar de fora para um grupo que se comunica predominantemente de modo endógeno? Como “tirar esse grupo para dançar”? Talvez esta seja uma das mais importantes questões a serem trabalhadas no resgate da normalidade democrática; todavia, isso é assunto para outro momento.

 

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Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é mestre e doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas. 

 

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