OPINIÃO
Na manhã de 28 de janeiro de 2023, uma audiência de conciliação entre lavradores resgatados em condições análogas à escravidão em um cafezal em Manhumirim (MG), e a fazenda que os contratara chegava ao fim sem acordo, após oferta de um valor irrisório como compensação às vítimas. É difícil escapar à ironia dos fatos: 28 de janeiro é o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. Em plena data que celebra a luta contra esta prática, a Justiça do Trabalho falhava em combatê-la.
A audiência se deu no contexto da ação trabalhista 0010056-79.2023.5.03.0066, em que uma produtora de orgânicos, tida como "sustentável" e "consciente", com sede na Zona da Mata mineira, que responde pelo crime de submissão de trabalhadores a condições análogas à escravidão. No centro do caso estão sete lavradores resgatados do local pela fiscalização federal do Trabalho em julho de 2022.
Os safristas foram recrutados em Caetanos (BA), a 900 km de distância, sob a promessa de trabalho formal na fazenda, que coleciona selos de certificação internacional por boas práticas socioambientais. Por trás da fachada corporativa de responsabilidade social, encontraram outra realidade: já na chegada às fazendas, tiveram, ainda segundo o MPT (Ministério Público do Trabalho) que percorrer 20 km a pé para comprar mantimentos, visto que o supermercado mais próximo dista 10 km dali e não há meios de transporte destinados aos funcionários.
O alojamento onde pernoitavam exibia paredes infiltradas pela umidade, quartos com colchões imundos e banheiros entupidos, que forçavam a realização das necessidades básicas ao ar livre. Uma área externa sem geladeira fazia às vezes de cozinha, e a água que chegava às torneiras tinha partículas negras em suspensão, que se soltavam das paredes de uma caixa d'água de amianto. Soma-se às condições precárias de moradia, o frio característico desta região montanhosa aos pés da Serra do Caparaó, onde o grupo laborou durante o inverno, sem vestimentas compatíveis com temperaturas frequentemente inferiores a 10º C.
Enquanto permaneceram no local, de 20 de junho de 2022 até o resgate em sete de julho de 2022, os lavradores não tiveram acesso a sua carteira de trabalho, retida pelo empregador, tampouco às anotações de controle da produtividade, em que se baseava o pagamento diário.
Longe de ser excepcional, o caso dessas fazendas ecoa dois episódios similares recentes. Em fevereiro deste ano, 207 homens foram resgatados em situação degradante em vinhedos em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. Em março, uma operação do Ministério Público do Trabalho libertou outras 32 pessoas de uma fazenda de cana-de-açúcar em Pirangi, no interior de São Paulo.
De acordo com dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), somente em 2022, 2.575 pessoas foram encontradas em situação análoga à de escravo no Brasil. A região nordeste foi palco de 51% das ocorrências registradas no período e o local de origem de 58% dos resgatados. O perfil predominante das vítimas foi do sexo masculino (92%), negros (83%), com idade entre 30 e 39 anos (29%).
Falta neste cenário que a Justiça do Trabalho enfrente o crime de submissão ao trabalho em condições análogas à escravidão impondo penas custosas aos perpetradores. De um modo geral, observa-se a aplicação de penas brandas, que favorecem a perpetuação da prática.
No caso específico das fazendas da Zona da Mata mineira, o valor proposto pelo empregador como compensação às vítimas foi de R$ 2.000 por trabalhador, ao passo que o juiz sugeriu acordo fixado em R$ 10 mil para cada vítima.
A conduta do magistrado não é isolada, vide o também citado exemplo do Rio Grande do Sul, em que o MPT propôs indenizações por danos morais individuais de aproximadamente R$ 3.000.
Em comparação, casos de extravio de bagagem por companhias aéreas têm gerado em média condenações entre R$ 5 mil e R$ 20 mil de dano moral indenizável, por passageiro, além de montantes devidos por danos materiais.
Os valores de R$ 2 mil e R$ 10 mil são desproporcionais às circunstâncias vivenciadas pelos trabalhadores, submetidos a condições degradantes de alojamento, alimentação e labor. A conduta sinaliza que o crime de submissão ao trabalho escravo, ainda que não passe impune, custa muito pouco aos perpetradores.
O que se constata é que procuradores do trabalho, juízes e desembargadores se comovem mais com uma mala perdida do que com o abuso e exploração de miseráveis.
A Justiça, ao fixar indenizações tão baixas, não coíbe o trabalho análogo à escravidão nas e permite sua perpetuação como prática financeiramente lucrativa para os fazendeiros, pois, "vale a pena" o risco de uma condenação trabalhista.
Ação nº 0010056-79.2023.5.03.006
Karin Anspach Hoch é jornalista, tradutora-intérprete português-inglês e mestre em relações internacionais pelas universidades de Viena/Leipzig/Roskilde e London School of Economics.
Revista Consultor Jurídico
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