O compromisso da economia solidária com a sociedade, aproxima os pensadores socialistas europeus do século XIX dos povos tradicionais.
Helena Singer
Paul Singer encontrou-se com a economia solidária depois dos 60 anos de idade e foi um encontro definitivo, que o faria resgatar e reinventar diversos aspectos de sua produção intelectual, bem como da trajetória como gestor público e de sua militância política. Certa vez, perguntado sobre como foi essa virada na sua vida, respondeu remetendo à experiência que teve no movimento juvenil sionista socialista, quando ainda era adolescente, e a toda sua história como militante e intelectual de esquerda.
Nos anos 1990, o Brasil enfrentava a continuidade de severa crise econômica, que deixava milhões de trabalhadores sem emprego. Naquele contexto, a Cáritas, organização ligada à Igreja católica, fomentava a organização solidária dos trabalhadores e convidou o então professor titular de Economia da Universidade de São Paulo (USP) a visitar algumas cooperativas. A visita impressionou fortemente Paul Singer, que viu ali um caminho claro para o enfrentamento da crise com princípios que retomavam as propostas socialistas.
Paul Singer havia sido secretário de Planejamento da gestão Luiza Erundina na cidade de São Paulo, entre 1989 e 1992, depois reassumiu suas funções na Faculdade de Economia, mas, como sempre fez, manteve sua atuação militante no Partido dos Trabalhadores (PT). Quando participava da elaboração do plano de governo da candidatura de Erundina para uma nova gestão na cidade, em 1996, trouxe a ideia do fomento à economia solidária em artigos que tiveram bastante repercussão. Luiza Erundina não foi eleita, mas Paul Singer levou adiante a proposta fortalecendo um circuito entre a universidade e as organizações dos trabalhadores.
Começou por assumir, ao lado de colegas das outras universidades paulistas, a coordenação do Grupo de Trabalho de Economia Solidária da Fundação Unitrabalho, uma rede nacional de universidades, que passou a organizar seminários em que os vários atores daquele incipiente movimento se encontraram e reconheceram: a Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e de Participação e Acionária (Anteag), a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ITCP-UFRJ), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entre outras entidades que organizavam a formação de cooperativas em várias partes do país. Paul Singer também provocou a Central Única dos Trabalhadores (CUT) a formar uma incubadora para viabilizar projetos de cooperativas, o que deu lugar à Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS), criada em parceria com a Unitrabalho e o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Na USP, o interesse pela economia solidária crescia entre os estudantes. As palestras do velho professor entusiasmavam os jovens estudantes, que o convidaram a orientar um grupo de estudos, prática que Paul Singer sempre estimulou e apoiou. Com o tempo, os estudos se formalizaram em uma disciplina de pós-graduação. Coerente com o conteúdo ministrado, Singer imprime ao curso o caráter democrático, construindo com os estudantes a seleção dos textos a serem estudados e a organização dos seminários, sempre em rodas de debate. Além disso, o curso conecta os estudos aos projetos de pesquisa e de vida dos estudantes, como narram os próprios estudantes no livro Uma outra economia é possível.
Mas não são só jovens que se transformam nesses encontros: “Acho que, junto com gerações de marxistas, estou evoluindo, não deixei de ser propriamente marxista, mas reavaliei totalmente a contribuição dos utópicos, praticamente Pierre-Joseph Proudhon, e isso graças aos meus alunos. Nos meus últimos anos na universidade, de 1999 em diante, meus alunos me perguntam por que não fazíamos um seminário sobre Proudhon. Estava fora do meu horizonte, mas topei e fizemos. Li Charles Fourier, Robert Owen, e isso ampliou minha visão. Impressionante como somos um pouco escravos dos mestres: eu lia esses autores pelas lentes de Engels, e me dava por satisfeito, mas foi um erro”.
Em 1999, a Coordenadoria Executiva de Cooperação Universitária (Cecae) da USP cria a Incubadora Técnica de Cooperativas Populares e convida Singer a assumir a função de coordenador acadêmico, convite prontamente aceito. Nos primeiros anos de atividade, a ITCP-USP dedica-se à incubação de cooperativas de trabalhadores que vivem nos bairros vizinhos, à orientação do desenho de políticas municipais de economia solidária em São Paulo e Guarulhos e ao apoio a outras incubadoras universitárias em formação. As incubadoras universitárias decidem formar uma rede, que se filia à Unitrabalho.
A virada do século é de ebulição para os movimentos da sociedade civil organizada no país e a economia solidária tem destaque nesses processos. Multiplicam-se as iniciativas e a articulação das suas organizações no reconhecimento de seus potenciais e desafios e na construção de uma pauta comum. Organizam-se assim as bases de um movimento nacional. Momento decisivo para isso é a constituição de um grupo de trabalho, o GT Brasileiro de Economia Solidária, a partir do I Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, no qual as atividades de economia solidária haviam reunido mais de 1.500 pessoas, número que cresceria nos fóruns seguintes.
Quando Lula, que havia escrito a apresentação do livro Introdução à economia solidária, vence as eleições para a presidência, no final de 2002, o GT formula uma carta ao novo governo, sugerindo a criação da Secretaria Nacional da Economia Solidária (Senaes). Na sequência, organiza a I Plenária Brasileira da Economia Solidária, em São Paulo, na qual se indica o nome de Paul Singer para liderança da secretaria, a ser instalada no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Ali, o professor tornado secretário mantém e reforça seu estilo de atuar, convidando todos os servidores de carreira a se formar no tema com o qual passariam a lidar, criando muitas oportunidades de debate e instâncias gestoras participativas.
A democracia e a solidariedade para superar o capitalismo
Os nove textos que compõem este segundo volume da Coleção Paul Singer foram escritos entre 2001 e 2013 e, no conjunto, oferecem uma visão ampla sobre os princípios, conceitos e histórico da economia solidária no mundo, tendo a experiência brasileira como referência para políticas públicas comprometidas com a superação da pobreza e da heteronomia no trabalho, o fortalecimento da democracia e a conquista de uma vida melhor para todos.
Ao longo dos mais de vinte anos que Singer dedicou-se à economia solidária, além do livro Introdução à economia solidária, que abre este volume, escreveu muitos artigos sobre a temática para livros, revistas e jornais e deu inúmeras palestras, várias delas transcritas. Em estimativa conservadora, há cerca de cinquenta títulos. A seleção dos artigos que deveriam compor este volume precisava seguir algum critério.
Em seus últimos anos de vida, o próprio autor selecionou dezesseis de seus escritos sobre o tema para o livro Ensaios sobre economia solidária, lançado em Portugal, por iniciativa do professor Rui Namorado, em 2018. Partimos então dessa escolha feita pelo autor, priorizando os artigos que ainda estavam inéditos ao público brasileiro ou que já não estavam mais em circulação por aqui, e que complementam ou trazem novos aspectos em relação à primeira obra.
Os fundamentos e o campo da economia solidária
Em Introdução à economia solidária, Singer delimita o campo. Inicia por apresentar os fundamentos do modo de produção solidária em contraposição ao modo capitalista, que celebra a competição, mas possibilita que os ganhadores acumulem vantagens. Já o modo de produção solidária promove a igualdade entre os que se associam para produzir, comerciar, consumir ou poupar. Sob os princípios da propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual, na economia solidária “ninguém manda em ninguém” (p. 9). Na empresa solidária, os sócios fazem retiradas conforme a receita obtida. As sobras são divididas entre um fundo de educação e um fundo de investimento, que pode ser em parte dividido entre os sócios e em parte fica como legado para as próximas gerações da cooperativa e da sociedade.
Quanto à gestão, na empresa capitalista, domina a hierarquia em busca da eficiência econômica, enquanto, na empresa solidária, a autogestão se realiza por meio de uma administração democrática que busca o desenvolvimento humano, daí a centralidade da educação na proposta.
Na sequência do livro, Paul Singer traça o histórico das origens da economia solidária, desenhando um panorama da sua abrangência nos campos do consumo, do crédito, das compras e vendas e da produção. Em todos esses campos, os traços distintivos das cooperativas são as relações de confiança e solidariedade e a organização autogestionária. A análise histórica permite acompanhar momentos de expansão do cooperativismo, em que é elemento decisivo para o desenvolvimento, e também momentos de degeneração, quando os agentes abrem mão da autogestão por processos mais burocráticos e desiguais. Muitas vezes, ambos os processos são relacionados, com os princípios se perdendo na medida em que o cooperativismo cresce.
O crescimento do cooperativismo acontece principalmente quando seu caráter inovador possibilita às cooperativas oferecerem soluções melhores à população do que a concorrência capitalista.
Para Paul Singer, fomentar os empreendimentos de economia solidária deveria estar no centro dos projetos dos partidos, governos e movimentos de esquerda. O autor lembra que o Estado apoia as empresas capitalistas com isenções fiscais e crédito favorecido.
Mas este apoio raramente se estende à cooperativa de produção, vista pelo lado conservador do espectro político como anomalia. Também a esquerda, que aposta tudo na tomada do poder político como via única de transformação estrutural, enxerga a cooperativa de produção como quimera, cujo único efeito é desperdiçar forças e esperanças. (p.110)
Muito distante dessa visão da economia solidária como quimera, Paul Singer reconhece nela a real superação do capitalismo. “A economia solidária foi concebida para ser uma alternativa superior [ao capitalismo] por proporcionar às pessoas que a adotam, enquanto produtoras, poupadoras, consumidoras etc., uma vida melhor. Vida melhor não apenas no sentido de que possam consumir mais com menor dispêndio de esforço produtivo, mas também melhor no relacionamento com familiares, amigos, vizinhos, colegas de trabalho, colegas de estudo etc.; na liberdade de cada um de escolher o trabalho que lhe dá mais satisfação; no direito à autonomia na atividade produtiva, de não ter de se submeter a ordens alheias, de participar plenamente das decisões que o afetam; na segurança de cada um saber que sua comunidade jamais o deixará desamparado ou abandonado” (p.114-5).
O aprendizado da história deixa clara a agenda capaz de transformar a economia solidária, de um modo de produção intersticial, inserido no capitalismo em função dos vácuos deixados pelo mesmo, numa forma geral de organizar a economia e a sociedade. Ela “teria que gerar sua própria dinâmica em vez de depender das contradições do modo dominante de produção para lhe abrir caminho” (p.116). Para tanto, é necessário erguer um sistema de crédito cooperativo e um sistema de geração e difusão de conhecimento.
É com essa agenda clara que o professor encerra o livro e no ano seguinte assume a Senaes. Os textos que vêm a seguir já foram escritos pelo secretário e possibilitam, de um lado, aprofundar e revisar os fundamentos da economia solidária. De outro, conhecer os desafios, limites e potenciais das políticas públicas para o fomento dessa forma alternativa e superior de organizar a vida em sociedade.
Desenvolvimento solidário
No aprofundamento de sua análise sobre a economia solidária, Paul Singer retoma o tema central da sua obra: o desenvolvimento. “O desenvolvimento econômico, enquanto processo de mudança estrutural [era] o centro maior de meus interesses teóricos”. Inicia-se no tema, ainda nos anos 1960, buscando superar a visão tradicional que opunha um suposto setor “moderno”, formado pelo que hoje chamamos de agronegócio e mineração, voltado para o mercado externo, a outro tido como “tradicional”, caracterizado pela produção de subsistência. Para Paul Singer, ambos os setores seriam parte da economia colonial, que o desenvolvimento deveria superar. Na década seguinte, quando está dedicado à questão do trabalho e emprego em países subdesenvolvidos, revisa seu esquema de compreensão sobre o desenvolvimento, descrevendo um setor específico, composto por empreendimentos individuais, cujo produto se destina ao mercado.
Parece claro que a dedicação do autor à economia solidária o leva a qualificar o que seria desenvolvimento, diferenciando o capitalista, dominado pelo grande capital, livre mercado, competição, individualismo e Estado mínimo, do solidário. No artigo “Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidário”, de 2004, descreve o desenvolvimento solidário como “processo de fomento de novas forças produtivas e de instauração de novas relações de produção, de modo a promover um processo sustentável de crescimento econômico, que preserve a natureza e redistribua os frutos do crescimento a favor dos que se encontram marginalizados da produção social e da fruição dos resultados da mesma” (p.141).
Os empreendimentos individuais, que havia descrito nos trabalhos dos anos 1970, quando associados, podem compor o conjunto daqueles capazes de superar o capitalismo. “Se e quando a economia solidária, formada por empreendimentos individuais e familiares associados e por empreendimentos autogestionários, for hegemônica, o sentido do progresso tecnológico será outro, pois deixará de ser produto da competição intercapitalista para visar à satisfação das necessidades consideradas prioritárias pela maioria” (p.142).
Recusando a perspectiva maniqueísta, Paul Singer localiza os debates que envolvem novas tecnologias em diferentes hipóteses científicas sobre como conduzir o progresso humano: “O desenvolvimento solidário busca novas forças produtivas que respeitem a natureza e favoreçam valores como igualdade e autorrealização, sem ignorar ou rejeitar de antemão os avanços científicos e tecnológicos, mas submetendo-os ao crivo permanente dos valores ambientais, da inclusão social e da autogestão” (p.142).
“Angústia econômica no capitalismo e na economia solidária”, resultado da participação de Singer em um congresso de Psicologia, traz a subjetividade para a distinção entre o capitalismo e a economia solidária, possibilitando ao autor aprofundar as qualificações utilizadas nos textos anteriores sobre “ganhadores” e “perdedores”, bem como a análise sobre as consequências, para os empregados, das transformações nas empresas capitalistas decorrentes das inovações tecnológicas.
“É possível levar o desenvolvimento a comunidades pobres?”, artigo escrito para ser discutido internamente no Ministério do Trabalho, parte de uma hipótese: a pobreza da comunidade relaciona-se diretamente com seu grau de integração ao mercado global. Mas a forma de promover essa integração deve se dar pelos princípios da economia solidária. Isso significa que tem que ser para toda a comunidade ao mesmo tempo, com juros subsidiados por fundos públicos a longo prazo. O caminho passa por mercadorias que possam ser vendidas pelas comunidades para fora em quantidades crescentes, a chamada “brecha de mercado”. Esta deve ser buscada nos produtos tradicionais com qualidade, na criação de produtos que atendam novas demandas ou no aumento da produtividade de atividades já presentes na comunidade.
Para orientar as comunidades nesse caminho, as políticas públicas devem investir em agentes de desenvolvimento, que são profissionais do Estado ou de organizações da sociedade civil encarregados de formar, apoiar o processo de concessão de crédito e acompanhar os empreendimentos criados. É necessário também organizar arranjos produtivos locais, que articulem comunidades com a mesma especialização para o desenvolvimento tecnológico, a compra de insumos e o marketing de produtos. A conclusão do artigo de alguma forma contradiz a ideia do título, de que o desenvolvimento seria “levado” para as comunidades pobres: “Desenvolvimento comunitário já está acontecendo no Brasil há décadas, portanto, não se está partindo do marco zero. A novidade seria a ampliação do apoio federal sistematizado e coordenado, mas sem qualquer intenção de padronizá-lo” (p.178).
“A economia solidária no Brasil” apresenta os sete princípios da economia solidária como orientadores das políticas públicas no país: autonomia, autogestão, porta aberta (ninguém deve ser impedido de ou coagido a entrar ou ficar na cooperativa), solidariedade, transparência, acesso ao conhecimento científico (educação) e rodízio nos cargos de direção. Ao apresentar o princípio da solidariedade, Singer faz referência ao bem viver, conceito inspirado nos modos de vida das nações ameríndias que questiona a ideia de desenvolvimento, propondo em seu lugar, a harmonia do ser humano consigo mesmo, com o outro e com a natureza.
A escolha pelo termo dialoga diretamente com a apresentação da estratégia da Senaes para o desenvolvimento local, a do etnodesenvolvimento, “ou seja, o desenvolvimento produzido pelo esforço coordenado dos membros da própria comunidade, sem depender de investimentos externos, provindos de fontes públicas ou de fontes privadas” (p.188).
O caminho da etnodesenvolvimento permite a ampliação das políticas da economia solidária para comunidades tradicionais indígenas e quilombolas, cooperativas de mulheres e coletivos de jovens. No lugar da dependência de investimentos externos, o foco está nas finanças solidárias, por meio de bancos comunitários de desenvolvimento, fundos rotativos solidários e cooperativas de crédito.
Construindo as políticas com o movimento social
“A economia solidária como inovação no Brasil no fim do século XX” traz mais elementos para a proposição de que a economia solidária não é resultado de programas elaborados centralmente pelos governos, mas sim de processos protagonizados pelas comunidades no enfrentamento dos desafios sociais e econômicos. Este é o fundamento do conceito de inovação social.
Ao relatar a história da economia solidária no Brasil a partir dos anos 1980, Singer ressalta todos os elementos da conceituação da inovação social e suas tecnologias. Desde os Projetos Alternativos Comunitários (PAC) liderados pela Cáritas, que, com o tempo, dão lugar a assentamentos da reforma agrária, cooperativas de produção agrícola e de serviços urbanos. “De todas essas inovações nasceu a economia solidária. Não há dúvida de que, no Brasil dos anos 1980, o cooperativismo de trabalho tornou-se importante tecnologia social, até então desconhecida no país” (p.194).
A inovação social não é necessariamente inédita, mas, por ter como objetivo enfrentar os desafios dos contextos específicos e se basear em pesquisa e processos coletivos de decisão, engendra a criação de novas tecnologias, que refletem a diversidade das culturas que as criam.
O cooperativismo foi uma inovação social na passagem do século XVIII ao XIX, inventado para enfrentar a degradação do trabalhador, proletarizado pela Revolução Industrial na Grã-Bretanha, França e demais países europeus. Redescoberto no Brasil dois séculos depois, a ele se agregaram mais inovações sociais, como clubes de troca, que introduziram no país a experiência das moedas sociais, hoje emitidas por bancos comunitários. (p.195)
Como inovação social, a economia solidária é diversa e se reinventa continuamente para se tornar resiliente.
Os dois artigos seguintes apresentam os princípios e estratégias das políticas públicas para o fomento da economia solidária a partir da experiência da Senaes. Neles fica evidente a linha de continuidade entre o intelectual que opta sempre pela interdisciplinaridade e pluralidade, o professor que conecta os métodos pedagógicos com os conteúdos estudados e o gestor público que orienta os processos sempre pela intersetorialidade, a produção de conhecimentos na conexão entre a academia e o movimento social e a democracia na base dos processos de decisão.
Em “A experiência brasileira nas políticas públicas para a economia social e solidária”, escrito em 2011, Paul Singer afirma que o fomento à economia solidária passa por “disseminar entre a população trabalhadora a convicção de que o emprego assalariado não é a única nem necessariamente a melhor opção para ganhar a vida de forma digna; de que há outras opções, entre as quais se destaca o exercício por conjuntos de trabalhadores associados de atividades por conta própria” (p.204). Pode-se imaginar que essa perspectiva não foi facilmente assimilada no Ministério do Trabalho, o que levou o secretário-professor e sua equipe a organizarem processos de formação para os funcionários dos outros departamentos do ministério.
Além de disseminar essa outra forma de trabalhar e viver com dignidade, é preciso oferecer aos trabalhadores oportunidades de adquirir os meios de produção e as habilidades profissionais para a administração coletiva e também estimular sistemas financeiros solidários. Os conhecimentos necessários para tal empreitada encontram-se no diálogo entre o acadêmico e o prático.
“A economia solidária no combate à pobreza e por democracia” foi escrito em 2011, em colaboração com os membros do Comitê Gestor da Senaes, como uma agenda para o recém-eleito governo de Dilma Rousseff, que definiu a erradicação da miséria como sua principal tarefa.
Naquele contexto, a Senaes entendeu que teria grande contribuição a dar. A seu ver, a miséria no Brasil é remanescente daquela que começou a ser reduzida com as políticas dos governos Lula. Por isso, para erradicá-la, seria preciso continuar inovando a partir de diagnósticos apurados de suas causas.
A experiência da economia solidária seria especialmente útil para essa tarefa. As cooperativas sociais, inovação italiana dos anos 1970 trazidas para o Brasil por meio de acordo de cooperação entre Senaes e Ministério da Saúde, possibilitaram tirar da miséria egressos de manicômios. Já o programa realizado em parceria com Ministério da Justiça focou nos jovens internados em instituições socioeducativas, nos apenados, egressos das penitenciárias e seus familiares. Outro programa, de apoio a incubadoras envolvendo cem universidades, possibilitou o trabalho com comunidades tradicionais, na perspectiva do etnodesenvolvimento.
O movimento social da economia solidária permanece forte, articulado e a Senaes acaba por desempenhar papel sui generis como órgão estatal que também responde ao movimento. Isso fica claro nesse artigo, que referenda carta dirigida à presidenta solicitando a criação do Ministério da Economia Solidária, assinada por oitenta entidades de diversas naturezas. Ainda mais contundente é o endosso das críticas ao governo, feitas pelas Conferências Nacionais de Economia Solidária, de 2006 e 2010, por não priorizar e economia solidária.
As ambiguidades do governo petista em relação ao espaço dado à economia solidária talvez tenham relação com as dificuldades em geral da esquerda com essa proposta.
O último artigo deste volume trata especificamente desse assunto: “A construção da economia solidária como alternativa ao capitalismo”, escrito no conturbado ano de 2013.
Nele, Paul Singer revisa as disputas na esquerda entre a proposta de centralizar a luta trabalhadora na conquista de direitos, a partir da ação do Estado, e a visão que privilegia a superação da “tirania do trabalho assalariado” e a crescente conquista de participação nos espaços e processos de decisão, ou seja, a luta pela democracia.
É com essa visão que vai resgatar experiências históricas, desde a luta das mulheres pelo sufrágio universal até o nascimento do PT, passando pelo movimento dos direitos civis dos afro-americanos, o socialismo autogestionário da Iugoslávia sob Tito, os movimentos estudantis dos anos 1960 e o Solidarnosc na Polônia.
A conclusão do artigo remete ao “florescer de uma profusão de economias” que recebem diferentes nomes nos cinco continentes, mas que têm em comum a capacidade de criar alternativas viáveis ao capitalismo neoliberal.
Resultados
Em seu conjunto, as obras que compõem este volume permitem conhecer a economia solidária pela visão de um de seus maiores formuladores. Permitem também observar como essa visão se enriquece com o tempo, o contato e a experiência com a diversidade brasileira. Compõem, por fim, um registro histórico sobre a economia solidária no país, cujos resultados vale a pena assinalar.
O primeiro resultado evidente é o da própria constituição da economia solidária, um conjunto articulado de agentes, iniciativas, políticas, instituições e narrativas, com visões compartilhadas e agendas comuns, que não se reconheciam como tal até a última década do século passado. Em consequência, articulou-se um movimento nacional, que vem continuamente se fortalecendo, envolvendo empreendimentos econômicos, instituições da sociedade civil, universidades, sindicatos, entidades religiosas, comunidades tradicionais e coletivos em fóruns, redes e associações.
Movimento que se articula em relações dinâmicas com os mais importantes movimentos sociais do país, como dos trabalhadores sem-terra, das mulheres, juventudes, povos tradicionais, pela cultura, meio ambiente, democracia, educação. A constituição, permanência e fortalecimento desse movimento é a base para as demais conquistas da economia solidária.
O segundo conjunto de resultados a ser apreciado refere-se à relevância econômica desse campo. Isso poderia ser medido pelo número de empreendimentos econômicos existentes e o número de trabalhadores associados a eles. A Senaes criou o Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária (Sies) e realizou alguns mapeamentos sobre empreendimentos econômicos solidários, entidades de apoio e fomento e sobre políticas públicas voltadas à economia solidária. O último desses mapeamentos, publicado em 2014, apresentava cerca de 20 mil empreendimentos, com 1,4 milhão de trabalhadores.
Mas esse número é insuficiente para compreender o real impacto da economia solidária, se consideramos a diferença que Paul Singer faz entre o modo de produção intersticial, inserido nos vácuos no capitalismo, e a nova forma de organizar a economia e a sociedade, aquela capaz de gerar sua própria dinâmica. Daí a importância das cadeias produtivas, dos arranjos econômicos setoriais, das redes de produção e comercialização, estas últimas estimadas, em 2012, em duas centenas espalhadas pelo país.
Também é preciso analisar a disponibilização de infraestrutura, tecnologias e de serviços financeiros. Nesse aspecto, ressaltam os fundos rotativos, as cooperativas de crédito e os bancos comunitários. A Rede Brasileira de Bancos Comunitários contabiliza atualmente 103 membros.
Ainda em relação ao impacto econômico propriamente dito, é preciso considerar o poder da economia solidária para apoiar as pessoas na superação da miséria via inclusão produtiva. Nesse sentido, tem especial relevância a existência e resistência de cooperativas formadas por ex-moradores de rua, sofredores psíquicos, pessoas em conflito com a lei e outros grupos sociais vulnerabilizados.
A transversalidade da economia solidária nos vários campos sociais é também conquista a ser registrada no sentido da transformação da sociedade que Singer propõe, como com a expansão dos pontos de cultura e correlatos, empreendimentos agroecológicos, turismo de base comunitária, entre outras muitas iniciativas que também favorecem os valores ambientais, da inclusão social e da autogestão.
Especial relevância tem a economia solidária na educação, que se estende desde a educação básica, com a inclusão da temática nos currículos da educação de jovens e adultos e na formação técnica, até a educação superior, na qual se disseminam as incubadoras tecnológicas e os cursos em nível de graduação e pós-graduação, passando pelo amplo universo da educação popular, empreendida pelos movimentos sociais e pelos programas de formação de agentes de desenvolvimento solidário.
A institucionalização da economia solidária é também aspecto a ser observado. As políticas públicas em níveis municipais, estaduais e nacional brasileiras são hoje referência mundial. A estrutura que possibilita a sua realização é formada não só por secretarias especializadas, mas também por centros de formação, apoio e assessoria técnica, além das incubadoras. E a conquista talvez mais complexa, do ponto de vista das negociações necessárias tanto dentro do movimento quanto com os representantes dos interesses contrários, os capitalistas, é o marco legal da economia solidária.
Desde 1999, são muitas as negociações e disputas em torno da aprovação e regulamentação de leis que possibilitem a existência formal dos empreendimentos e as formas autogestionárias de organização e remuneração dos trabalhadores. Singer empenhou-se pessoalmente nessa causa e várias leis têm sido aprovadas nos três níveis da federação.
Todos esses resultados não foram conquistados sem muitos esforços e mobilização e seguem sendo limitados para a dimensão da transformação almejada. Não poderia ser diferente considerando que se trata de mudanças profundas, que almejam o fim do capitalismo. Para que isso se efetive é preciso que, como diz Singer, o Estado deixe de financiar apenas as empresas capitalistas, e que crescentemente financie também a economia solidária.
Em síntese, podemos perceber que, em vinte anos, a economia solidária se consolidou no país, criando parâmetros inovadores não só para a organização econômica, mas para a organização da sociedade em geral. O compromisso da economia solidária com a sociedade, no presente e no futuro, aproxima os pensadores socialistas europeus do século XIX dos povos tradicionais que há séculos resistem nas Américas.
Para reconhecer essas aproximações e as alternativas viáveis por um mundo melhor, é preciso superar visões simplificadoras sobre o capitalismo, como um bloco totalizante, e perceber a convivência de diferentes economias. Mais uma vez lembramos o que diz Paul Singer: “os empreendimentos que compõem a economia solidária convivem com empresas individuais e familiares, com as estatais, as empresas privadas sem fins de lucro, o crime organizado, que cresce em relações simbióticas com as empresas nacionais e multinacionais. A transformação tem que ser compreendida e projetada considerando-se essa complexidade”.
Projetar a transformação dessa realidade complexa não é tarefa exclusiva do campo econômico. As pessoas aprendem a obedecer e temer os superiores no processo educativo na família patriarcal e na escola. E aprendem a superar essa submissão nas lutas emancipatórias, que democratizam as instituições e fazem avançar a política.
É preciso, então, fomentar processos de democratização, de participação, nas diversas organizações que formam as subjetividades, para que as pessoas passem a desejar a mudança e saibam como fazê-la, assumindo a gestão não só dos seus empreendimentos econômicos, mas de suas vidas, e o compromisso com o bem de todos. Que sociedade resultará desses processos, não sabemos. Mas o que importa é a trajetória.
Helena Singer é doutora em sociologia, é presidente do Conselho do Instituto Paul Singer. Autora, entre outros livros, de República de crianças (Mercado de Letras).
Fonte: A Terra é Redonda
Data original da publicação: 13/03/2023
DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/paul-singer-e-a-economia-solidaria/