Resgates como o das vinícolas multiplicam-se e chocam a sociedade. Mas expressam tendências do pós-golpe: desmonte dos direitos; jornadas intermináveis e precarização da vida.

Henri Acselrad

Após a eleição presidencial de 2018, especulou-se, no Brasil, sobre a eventual contradição, no interior do governo federal então eleito, entre, de um lado, um programa ultraliberal capitaneado por um economista formado na Escola de Chicago e, por outro, um suposto nacionalismo autoritário sustentado por militares que ganharam presença numérica na máquina governamental. Ao longo da gestão governamental do período 2019-2022, foi tornando-se clara a ausência de contradição e mesmo a convergência de forças na promoção articulada do que poderíamos chamar de um trabalho reacionário: forças que pretendiam aprofundar as condições de exploração do trabalho no campo e nas cidades e, também, forças que pressionam territórios indígenas e tradicionais para favorecer a expansão de áreas para a grande agropecuária e a mineração. O que teria unificado estas forças de diferentes origens então instaladas no governo? O que estes diferentes blocos de forças demonstraram ter em comum foi a expectativa de configurar um projeto liberal-autoritário, voltado para a desmontagem de direitos e a elevação da lucratividade dos negócios tanto pelo aumento dos ganhos por unidade de trabalho empregada, como pela extensão das áreas exploradas, inclusive pela ocupação de terras públicas.

 

Por um lado, a pretensão de abandonar a vida política às leis do mercado penetrou o Estado, justificando medidas indiferentes à pobreza, ao desenraizamento social, à discriminação racial, à destruição do meio ambiente e da saúde coletiva. Por outro lado, tornou-se explícita a recusa a tudo o que pudesse evocar solidariedade entre pessoas, povos e gerações. Aqueles sujeitos que, na retórica neoliberal, são apresentados como incapazes de competir, por não se terem supostamente mostrado suficientemente empreendedores, são, pelo viés autoritário, discriminados e inferiorizados. Na lógica deste liberalismo autoritário, não se justificaria, para os supostos “perdedores” da ordem competitiva, a adoção de políticas de combate à desigualdade ou de proteção à saúde. A eles restaria aceitar trabalhar nas condições que lhes são ofertadas, desprovidos de direitos e de proteção social, condições nas quais, por uma concepção monolítica e abstrata, o chamado “mercado” se mostraria inclinado a acolhê-los. Assim é que, compassivo com relação aos que dizem sofrer a “horrível condição de ser patrão”, imediatamente após sua eleição em 2018, o presidente que encarnou este projeto explicitamente inigualitário ameaçou os trabalhadores de que, caso não abrissem mão de seus direitos, não obteriam emprego1.

 

Neste caldo ideológico, a portaria do Ministério do Trabalho – que, em 2017, tentou, sem sucesso, legalizar o trabalho escravo – não deveria ser entendida em separado do projeto mais amplo de aplicar, ao mercado de trabalho formal, uma reforma trabalhista que tornasse mais estritas as normas disciplinares impostas, não só aos escravizados pela dívida, mas aos trabalhadores em geral. Não por acaso representantes do agronegócio alegaram, na ocasião daquela iniciativa, que “as novas condições políticas” – leia-se, aquelas geradas pelo golpe parlamentar destituinte de 2016 – autorizavam a legalização de condições de trabalho até então julgadas degradantes2. Nas condições vigentes a partir de então, não se trataria apenas de um retorno às formas tradicionais de imobilização do trabalho – dispositivos de fixação da mão de obra em espaços isolados e de pouca visibilidade pública – mas da emissão de um sinal disciplinador dos trabalhadores em geral, pelas possibilidades abertas de se impor maior penibilidade e precarização do trabalho.

 

Para entendermos a conexão entre as condições de existência do assalariamento formal e o trabalho em condições análogas à da escravidão, não custa lembrar o economista polonês Michael Kalecki3 que, nos anos 1940, já havia caracterizado as razões pelas quais o estado de laissez-faire é o preferido do empresariado: por meio da retração ou relocalização de seus próprios investimentos, os empresários influenciam o nível do emprego e, consequentemente, induzem os graus de disciplina que esperam obter dos trabalhadores. Para entender a persistência de casos de trabalho análogo ao da escravidão, nas vinícolas do Sul, no interior de São Paulo, de Goiás e em Duque de Caxias, temos que reconhecer a influência da conjuntura e da correlação de forças sociais que vigorou nos últimos anos. A conjuntura aberta com a eleição de um novo governo em 2022 leva não só à exigência de se fazer cumprir a legislação que regula a contratação de trabalho vindo de fora de uma região, mas a de por em pauta a garantia dos direitos de autodefesa dos trabalhadores em geral.

1 É difícil ser patrão, Folha de SP, 4/12/2018.

‘Só temos a comemorar’, diz Blairo sobre regras para fiscalizar trabalho escravo, O Globo, 17/10/2017.

3 Michael Kalecki, “Aspectos políticos do pleno emprego”. In: Crescimento e ciclo nas economias capitalistas, Hucitec, São Paulo, 1983 [1944], p. 54-60.

Henri Acselrad é professor Titular aposentado do IPPUR/UFRJ.

 

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 23/03/2023

 

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/quando-ser-precario-e-quase-ser-escravizado/