Hoje, os processos de produção oriundo de processos de trabalho vão se ampliando cada vez mais

 

por Helifax Pinto de Souza

 

A mercadoria especial tem concorrente? A força de trabalho, ao ser consumida produtivamente, deixou de ser a única mercadoria capaz de gerar valor? Nada indica!

 

Foi Marx quem descobriu que, dentre as centenas e/ou milhares de mercadorias existentes, só uma é capaz de gerar mais valor do que ela mesma consome. Essa mercadoria é a força de trabalho. Por isso mesmo foi quem a classificou de especial.

 

Já os demais componentes – como máquina e instalação – não geram valor novo, mas transferem fração de seu próprio valor a cada produto fabricado. Ou seja, o valor transferido corresponde ao valor de desgaste. Da mesma forma se dá com a matéria-prima e insumos, mas com uma diferença: é que nestes, quando consumidos, seus valores são transferidos por inteiro, e não por fração. Marx denominou todos esses meios de produção citados de “capital constante”.

 

Já com a força de trabalho, nominada “capital variável”, é diferente: o trabalhador não gera somente o necessário à sua sobrevivência, paga em forma de salário, por exemplo. Ele não para de trabalhar quando produz um equivalente igual aos seus vencimentos. Portanto, ele prossegue até cumprir uma jornada preestabelecida – digamos, de oito horas. Então, se foram necessárias quatro horas de trabalho para o trabalhador reproduzir seu próprio valor, indubitavelmente faltam outras quatro.

 

Essas quatro horas não recebidas pelo trabalhador, mas embolsadas pelo capitalista é o que Marx chamou de mais-valia. Em outros termos, ao prosseguir trabalhando além do tempo necessário em adquirir os meios necessários à sua própria sobrevivência, essa mesma força de trabalho gerou um valor novo sem nenhum custo para o capitalista.

 

Essa descoberta de Marx é tida como a pedra angular de sua obra principal, O Capital. No percurso do capitalismo, a Ciência & Tecnologia foi evoluindo e influenciando na composição orgânica do capital, uma vez que, cada vez que se emprega mais capital constante, menos capital variável se faz necessário. Isso vale tanto para o processo de produção quanto no da circulação de mercadoria.

 

Tratando dessa questão, intrigou-me um texto escrito por Carlos Seabra, sob o título “Da mais-valia à mais-sabia”, publicado em 31 de maio no Vermelho. Seabra escreve que os robôs são capazes de se apropriarem dos gestos e do “saber fazer” dos operários, podendo gerar valor (mais-valia virtual e perpétua) sem a necessidade de salários ou benefícios. Segue-se nesse mesmo raciocínio e diz que o emprego da inteligência artificial, ao se apropriar dos processos intelectuais e manuais dos trabalhadores, transformando-os em algoritmos, poderia chamar “mais-sabia”.

 

Por esse roteiro, somos forçados a concluir que a mercadoria força de trabalho deixou de ser a única especial, uma vez que a junção da inteligência artificial e robôs, ao serem empregados no processo de produção, fez surgir uma concorrente capaz, também, de gerar valor – quer dizer, de gerar mais valor do que consome.

 

Seria isso realmente possível? Não teríamos dificuldades dizer que sim se a parafernália tecnológica se apropriasse e tivesse, além da habilidade e do saber do trabalhador, a capacidade de gerar mais valor do que seu próprio desgaste; se fosse como é o trabalhador, elástico, maleável e flexível, que trabalha, digamos, quatro horas para repor seu desgaste e nas quatro horas seguintes continuasse se desgastando gerando valor sem ser remunerado.

 

A meu ver, a parafernália tecnológica, quanto mais desenvolvida, por menos que seja, alguma fração de valor sempre transfere a cada produto fabricado, mas não gera. Os robôs não têm necessidade de salário ou benefício, mas tem o tempo todo um conjunto de profissionais dispostos para repor placas eletrônicas, fazer reparos, trocar peças, fazer ajustes, dar start entre outros tantos. Toda mercadoria, até os dias de hoje, é constituída pela somatória de valor: transferido, reproduzido e produzido. Talvez algumas das dificuldades resida em não distinguir adequadamente o que é valor: gerado, transferido, reproduzido e produzido e ou extraído.

 

a) Valor gerado é quando a força de trabalho posta em ação no processo de produção gera valor maior que o valor necessário à sobrevivência desta mesma força, que é paga em forma de salário. Isso está envolvido, por exemplo, nas seguintes etapas de trabalho: invenção, criação, projetos e transformação de matéria-prima em produto em acordo ao que foi projetado.

 

b) Valor transferido diz respeito a percentual de desgaste de maquinaria, robôs, instalações, juntamente com toda matéria-prima e insumos consumidos e que são incorporados ao valor do produto durante o processo de produção propriamente dito.

 

c) Valor reproduzido é o tempo de trabalho necessário, dentro de uma jornada, para que o trabalhador reproduza seu próprio valor, recebido em forma de salário.

 

d) Valor produzido ou extraído é quando um comerciante compra mercadoria do fabricante por um preço abaixo do valor e a vende pelo valor, da diferença entre preço de compra e preço de venda, que é maior que o empenhado na compra de força de trabalho. Há margem para se extrair mais-valia, pois o balconista contratado, ao exercer sua função de vendedor, não gera, mas produz mais-valia para o dono do estabelecimento, uma vez que seu salário é menor que a referida diferença citada.

 

E vamos incorporar ao assunto mais uma questão: quanto mais evolui a Ciência & Tecnologia, há mais processo de produção e menos processo de trabalho. Marx tratou disso afirmando a tendência de queda na taxa de lucro do capital apesar da alta da mais-valia, sintetizando assim: “A taxa de lucro diminuirá apesar da alta da mais-valia, porque fração maior não paga da totalidade menor do novo trabalho adicional é menor que a fração menor não paga da totalidade anteriormente maior”.

 

Nos primórdios do capitalismo, numa oficina por exemplo, o processo de trabalho ocupava fração de tempo importante para se produzir. Mas, com as evoluções já apontadas, isso foi se invertendo: hoje, os processos de produção oriundo de processos de trabalho vão se ampliando cada vez mais. Na realidade, vão se alternando: num determinado estágio de evolução, deixa de ser um processo de trabalho para se transformar num processo de produção – porque um outro processo de trabalho mais sofisticado vem suplantar o (até então) processo de produção, e assim sucessivamente.

 

Chegará a um ponto em que processos de produção se darão quase só entre máquinas inteligentes e, quanto mais evoluírem, mais semelhante a certos processos fornecidos pela natureza ficarão, tipo plantio de milho em terra fértil em que da semeadura até a colheita pouco trabalho requer. De certa forma, empresas mais modernas já operam mais ou menos desse jeito, só que em ritmo acelerado.

 

É possível, hoje em dia, produzir sem gerar tanto valor novo, mas auferindo elevados lucros. Para isso acontecer, basta equipar a fábrica com o que há de mais moderno. Operando nessas condições, a produtividade será altíssima, sua mercadoria terá mais valor transferido que produzido, certamente a venderá em grande escala por um preço mais competitivo que a dos concorrentes. Estes, por sua vez, ou fazem o mesmo ou estão fadados a fechar as portas.

 

De tudo, nada disso aconteceria se o objetivo do capitalista fosse gerar mais-valia. Aliás, se pensasse assim, nem colocaria maquinário nem demitiria força de trabalho – só admitiria. Os capitalistas são do sistema; vivem no sistema; vivem do sistema, acumulam pelo sistema. Porém, ao terem no lucro o objetivo precípuo, despercebidamente, acabam que detonando a fonte geradora da acumulação do capital enquanto sistema, a mais-valia.

 

VERMELHO

https://vermelho.org.br/2023/06/11/os-robos-e-a-inteligencia-artificial-vao-derrotar-marx/